O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 55: Precipício

Meu corpo fez um som suave quando despencou do teto e bateu na lagoa. Ondas suaves viajaram em todas as direções. Após algumas perturbações leves a água lentamente se acalmou, enquanto meu corpo era absorvido pelo ambiente subaquático.

 Fiquei rodeado pela imensidão azul. Olhando para cima, por debaixo d’água, vislumbrei a luz cristalina, sentido seu toque quente e suave dentro daquele ambiente morno. O cristal brilhava forte, atiçando meus sentimentos. Uma mistura agridoce e ambígua.

Felicidade por enfim achar uma fonte de água, mas ainda uma tristeza profunda. Minhas lágrimas salgadas se misturaram e foram diluídas na lagoa exuberante.

A energia do impacto se dissipou e logo meu corpo flutuou, boiando na superfície. Não tentei reagir, não tentei nadar, apenas deixei ir. Meu eu apenas boiava no vazio. 

Meus problemas eram esquecidos enquanto cuspia a água como um pequeno chafariz por entre meus labios quebrados recém umedecidos.

Minha cauda balançava devagar por debaixo de mim, guiando meu caminho na direção da borda. 

Finalmente, água.

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Sentei-me encolhido na borda da lagoa. Meus braços abraçavam minhas pernas, enquanto meus pés tocavam suavemente a areia e leves ondulações traziam e levavam as fracas ondas. 

A pequena lagoa mais me parecia um gigantesco oceano do que a realidade me mostrava.

Meus olhos encararam o vazio, sem olhar o passado ou o futuro, despreocupados. Talvez fosse uma maneira do meu corpo não entrar em colapso naquele instante. Desapareceu com minhas emoções, pois a qualquer momento aquilo também poderia ser tirado de mim. Das minhas mãos.

Será que nesse mundo há oceanos?, pensei, silenciosamente. Se houver, gostaria de ver um algum dia. Uma brisa suave balançou meu cabelo escuro e minhas asas, e minha cauda jogou areia para cima.

Outra vez, deixei meu corpo se misturar a água.

Depois de um bom tempo naquela loucura de sair, sentar, devanear e me jogar de novo na lagoa — ação essa que repeti mais uma dúzia de vezes — finalmente aceitei a realidade que ainda não havia aceitado.

Fiquei de pé e olhei o ambiente, buscando por alguém além de mim, uma saída ou qualquer outra coisa que desse uma pista sobre o maldito lugar desconhecido.

Mesmo assim, de uma coisa sabia, tinha certeza, o Louco Rei Lich era quem havia me trazido até esse lugar. O motivo até me passava pela cabeça.

As poções de cura.

O Louco Rei Lich era um servo; não muito fiel, de Amadeus. 

Se o Vampiro Primordial deseja obter as poções de cura, então mandaria seu cachorro sequestrar a pessoa que as fabricou? Não diria nada? Não faria ele mesmo? 

Parecia improvável. Pensar demais nas excentricidades de uma criatura dessas apenas me daria mais dores de cabeça e tentar achar lógica nas loucuras de um louco apenas faria de mim outro louco.

Depois da minha investigação, descobri várias coisas.

A lagoa era pequena, mas bem profunda. Ela era tão profunda que eu nem conseguia enxergar seu ponto mais fundo.

O espaço não era muito diferente de uma caverna subaquática. Havia estalagmites e estalactites em cantos mais afastados e o chão era de areia branca com grãos finos. A água era um pouco mais doce que o normal; não sabia se era realmente, ou apenas minha sede que era imensa.

Apenas o cristal de mana estava na minha visão. Brilhava numa cor azul e emanava um calor delicioso, flutuando levemente a alguns metros da superfície d’água.

Passei algumas horas dando algumas voltas, observando todas as saídas possíveis e me certificando de que não havia perigo algum. Somente então pude suspirar, mas sem baixar a guarda.

Voltei a me sentar na borda da água.

— Talvez viver aqui não seja de todo mal — disse, afundando meus pés na areia. 

Minha mente vagueou e rostos foram surgindo. Meus companheiros. Seus olhares brilhantes e suas vozes alegres. Tinha certeza que ficariam felizes apenas se eu vivesse sozinho aqui.

Já estava acostumado.  Ela já era minha amiga: a solidão. 

— Talvez eu mereça tudo isso.  Que direito eu tenho de me achar especial? 

Achava que havia finalmente aceitado minha situação. Desistido. Até que outros rostos surgiram.

O Orc Nobre com sua cara de porco, atravessando a floresta e queimando a masmorra. Pisando nos corpos dos meus servos e tomando Anna e suas irmãs para ele.

Gregórios olhando-me de cima. Seu belo rosto recheado de desprezo e um sorriso cínico, como se gritasse para mim: “— Fracassado!”. Virava de costas e cuspia, desgostoso.

Amadeus, que apenas ignorava minha existência, passava por mim, como se eu fosse tão importante quanto um grão de areia no deserto.

Por fim, o rosto de uma mulher de olhos vermelhos brilhantes.

Mãe...

Fiquei de pé. 

— Esse não é meu fim.

Quanto terminei meu pensamento e retomava minha força de vontade, senti algo estranho.

Na água, vibrações chamaram minha atenção. Virei os olhos para a lagoa e vi as ondulações se intensificarem pouco a pouco. O ambiente pacífico estava deturpado.

Aproximav-se da borda numa boa velocidade, mudando de direção constantemente. Em um piscar de olhos, trocava. Direita e esquerda. Esquerda e direita. 

Cada vez mais próximo de mim.

Corri alguns poucos metros para outra direção. Tentava descobrir se estava realmente sendo perseguido e tive confirmação. Mesmo trocando de direção aquela coisa ainda me tinha como alvo.

Talvez fosse algo tão forte, ou até mais que o Cavaleiro da Morte. Não ficaria parado esperando uma resposta.

Busquei um esconderijo em uma das várias fendas da caverna, porém não fui rápido o bastante. De repente um tentáculo saiu da água. Ele tinha uma cor verde e escorria um liquido pegajoso nojento. O membro se moveu rapidamente e não tive reflexo para fugir. Agarrou minha perna e me arrastou para dentro d’água

Tive tempo apenas para prender a respiração, enquanto era sequestrado para as profundezas.

Rapidamente abri meus olhos sob a água, procurando meu agressor com os olhos. A luz do cristal iluminava o ambiente cristalino e conseguia enxergar entre meus fios de cabelo flutuantes.

O animal tinha dentes afiados, uma cor cinza escura e um corpo cheio de cicatrizes. A parte de cima do corpo era semelhante a um tubarão e a parte debaixo parecia com uma lula, agarrando-me com um dos seus tentáculos.

Tentei me desvencilhar dele, mas o aperto era muito forte. Usei ambos os braços para soltar e ainda assim não resultou em nada. Nenhum movimento. Estava preso como se fizesse parte do meu corpo.

E o animal não ficaria parado, esperando eu me libertar. Logo usou a força para me balançar como um brinquedo por debaixo d’água, jogando-me para cima e para baixo incessantemente.

Com mais um forte balançar, senti o ar escapar dos meus pulmões e enormes bolhas saírem voando enquanto eu o substituía por água.

No entanto, não me senti afogar.

[Habilidade Respiração Subaquática] adquirida

As guelras, normalmente ocultas no meu pescoço, abriram-se, deixando fluir a água no meu corpo e filtrando o ar que eu precisava para sobreviver.

— Gloop Gloop (Força Monstruosa) — tentei gritar o nome da habilidade.

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[Habilidade: Força Monstruosa] Ativada

Estatísticas de Força Triplicará pelo período de 2 minutos

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Meu corpo ainda estava exausto, então a duração da habilidade era pouca, mas o suficiente. Usei toda minha força para agarrar o tentáculo e esmagá-lo.

A pressão foi tanta que senti a carne estourar entre meus dedos e o sangue roxo sair, misturando-se com a água de tom azul.

O tubarão lula expressou sua dor, recolhendo o tentáculo e nadando rapidamente contra mim. Seus dentes afiados contra o meu pescoço.

Com uma velocidade imensa, cortou a distância entre nós rapidamente, mas eu estava pronto. Concentrei toda a força que tinha no meu punho direito e o arremessei para frente.

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[Habilidade: Ataque Aprimorado] adquirida

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Meu punho acertou em cheio o focinho do tubarão. Seu corpo foi jogado para trás alguns centímetros e mais sangue roxo saiu, junto de um dos dentes dele.

— Gloop! (Pode vir!) — exclamei, preparado para continuar lutando.

Entretanto, o tubarão parecia não compartilhar da ideia. Nadou um pouco em volta e logo fugiu, desaparecendo na escuridão do lago.

Fiquei parado um tempo, desativando a Força Monstruosa e pegando o dente dele que era do tamanho de uns quatro dedos. Decidi então sair da lagoa, já que o animal se acovardou e fugiu. Talvez ele tivesse ido apenas chamar os amigos, mas eu não ficaria para descobrir.

Me arrastei para fora d’água, com meu cabelo negro pingando e todo molhado outra vez. Assim que o ar voltou aos meus pulmões, senti queimar a garganta enquanto colocava litros para fora.

Isso não é nada confortável, sinceramente.

Sentado no chão, percebi que havia perdido uma oportunidade. Aquele tubarão lula provavelmente era comestível, mas, para minha infelicidade, escapou.

Não adianta chorar pelo leite derramado.

Com o dente na mão, olhei suas estatísticas.

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[Item]

Nome: Dente de Tubarão-Polvo

Tipo: Material

Raridade: Incomum

Durabilidade: 95/100

Descrição:

O dente arrancado de um jovem Tubarão-Polvo. É uma peça afiada e resistente, além de ter um pouco de mana da água

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Fiquei satisfeito com o objeto, mas o que me chamava atenção era o nome: Dente de Tubarão-Polvo. 

— Tubarão-Polvo? — Ele não parecia com um polvo.

Encarei também as duas habilidades que obtive durante o combate curto.

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[Habilidade]

Nome: Ataque Aprimorado 

Tipo: Ativa

Raridade: Comum | Nível 1

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Essa eu já conhecia. Era bem comum em Vangloria e muitos monstros da masmorra também a tinham. Seu uso e poder eram simples. Concentrar mana em alguma parte do corpo, normalmente os punhos e lançar um ataque aprimorado.

Era bem útil, gastava pouca energia e poderia evoluir bem.

A outra habilidade era como a visão noturna. Uma capacidade inata do meu corpo miscigenado.

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[Habilidade]

Nome: Respiração Subaquática 

Tipo: Passiva 

Raridade: Raro | Nível 1

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A descrição dela era rápida. Simplesmente a capacidade de respirar ilimitadamente debaixo d’água.

Fechei as telas e voltei a sentar no chão, encarando o cristal. Nada de muito especial passava pela minha cabeça. Nada que eu já não tivesse pensado antes.

E, pensando nisso, notei que a mente serena estava calada há muito tempo. Desde que me tornei um Demônio Superior, ela não dizia mais nada.

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[Habilidade]

Nome: Mente Serena

Tipo: Passiva

Raridade: Raro | Nível 9

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Vendo a habilidade próxima de alcançar o nível máximo, fiquei pensando o que meu outro eu estava planejando.

Estava tão solitário nesse lugar, que até gostaria de escutá-lo um pouco.

Tentei me levantar, virando-me e colocando a mão no chão. Nesse processo, olhei para o chão e notei o tremer de algumas pedrinhas. Vibrações no solo.

Logo elas aumentaram ainda mais, até toda a caverna parecer estar passando por um fraco terremoto. Fiquei de pé o mais rápido possível.

Olhando para um dos buracos, o maior que tinha, vi que era de lá que vinham os movimentos.

— Droga! Eu não tenho um minuto de paz.

Pude ver não muito depois o que era.

Esqueletos e zumbis, centenas deles. E corriam furiosos na minha direção. Os corpos podres se despedaçavam enquanto um passava por cima do outro na marcha desorganizada.

Peguei tudo que eu poderia carregar. Mordi os dentes enfurecido, mas não deixei de beber uma boa quantia de água. Não sabia quando teria outra oportunidade como essa. 

Ainda bem que havia me preparado psicologicamente para ter tudo tirado de mim outra vez, senão teria desistido da minha terceira vida neste momento.

Olhei para cima, encarando o Cristal brilhante. Ele havia sido minha única esperança e eu provavelmente estaria quebrado se não fosse por seu brilho. Estava arrependido somente por não poder levá-lo comigo.

Porém não podia ficar enrolando. Visualizei uma fenda na direção oposta dos mortos-vivos e corri para ela.

Atravessei um corredor, escutando os passos se aproximarem junto do cheiro de morte. Continuei correndo até ser afogado na escuridão outra vez.

Meus olhos logo se acostumaram, mas o campo de visão era pouco. De repente, senti uma brisa bater contra o meu rosto e parei de imediato.

Respirando pesado, olhei para baixo. Meus pés parados onde o chão terminava e havia apenas um buracão. Um precipício. Eu havia chegado no fim da caverna.

Enxergar o que havia à frente parecia impossível. 

Os sons dos gemidos e grunhidos chegavam mais perto. Tinha duas opções. 

Esquerda. Ir para trás e morrer devorado ou...

Direita. Pular.

Eu pulei.

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