O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 57: Cavaleiro sem Cabeça

Havia me imaginado morrer de várias formas, principalmente durante a minha primeira vida. Poderia morrer atropelado, ou durante um assalto a mão armada. Poderia ter um aneurisma durante um banho quente, ou poderia cair e bater a cabeça no boxe do banheiro. Até mesmo me imaginei comer algo podre e simplesmente cair duro. 

Durante a segunda vida, não pensei tanto nisso, mas nas poucas vezes que parei para pensar, muitas mortes incomuns surgiram à cabeça. Ser traído pelos monstros e devorado ainda vivo. Ser despedaçado pelos enormes dentes da loba gigantes talvez fosse uma morte rápida. 

 Quando viajei, imaginei um Orc pisoteando minha cabeça e degustando meu cadáver como uma iguaria inimaginável de sabores. Durante o leilão, devaneei sobre morrer pelas excentricidades de um governante em algum tipo de jogo cruel que eu mesmo faria no meu tempo de Vangloria. Seja para apaziguar meus pensamentos mórbidos ou apenas para calar a voz terrível do tédio. 

Essas e muitas outras formas de morrer foram imaginadas por mim. Entretanto nunca me passou pela cabeça que eu seria morto quando tomei a decisão de seguir um homem dentro de uma armadura negra e um pequeno macaco que tinha cara de coruja. E quem poderia? 

Cuidadosamente, abaixei a mão que segurava o pequeno Macaco-Coruja, colocando-o no chão de terra com o maior cuidado do mundo. Um rosnado e um bafo fedido, misturado com baba, voou na direção do meu rosto, quando terminei de colocar o animal no chão. Afastei-me três passos, indo na direção da armadura. 

— E, agora, o que fazemos? — perguntei, quase sussurrando.  

— Aguardamos e oramos ao deuses — ele respondeu e completou: — para que protejam nossas bundas. — Ainda terminou dizendo: — Não sei você, mas a minha está suando um bocado. 

Aquela pessoa era louca, ou era eu que estava ficando. Olhei para o elmo, estreitando os olhos confuso. Tentei ver pelas frestas, porém fracassei e não era hora de pensar nisso. 

O Babuíno-Coruja agarrou o pequeno Macaco-Coruja, colocou-o sobre seu ombro e resmungou algo baixinho. Estava paralisado vendo toda a cena e dei mais um passo atrás. Me arrependi logo depois. 

Acabei escorregando numa pedra do riacho e caindo na água, soando um barulho alto. Erguendo a cabeça, vi que todos os vários macacos me encaravam mostrando os dentes. 

— Jovem — disse a armadura —, corre! 

Ele virou rápido como um pião e saiu correndo mais rápido do que nunca. Um arrepio subiu pelo meu pescoço e o Babuíno mais próximo de mim exclamou um grito furioso. Ah, que merda!  

Eu também fugi correndo, seguindo a armadura. Conseguia escutar os passos e os gritos daquela centena de Macacos-Coruja no meu encalço.  

Minha cauda se arrepiou junto dos meus cabelos, e eu instantaneamente rolei para a direita. No lugar onde eu estava, passou um dos peludos, planando em alta velocidade. 

— Merda! Eles voam também?! — Claramente não continuei parado, já que cada segundo era precioso. 

Havia quantos deles atrás de mim? Chutava ao menos uns 150 deles. Braços longos e as presas afiadas para fora, que poderiam me rasgar ao meio. 

— Na verdade eles não voam — disse a armadura. 

— De onde você veio? — Ele apareceu do nada ao meu lado. 

— Eu sempre estive aqui... Abaixe-se! — gritou, e eu segui sua ordem. Outro macaco passou voando pela minha cabeça. — Esse foi quase, hein. Bom reflexo. 

— Isso não é hora para brincadeira. Como a gente se livra deles?!  

— Você é muito impaciente. Vamos, me siga. Conheço essa floresta como se ela fosse minha própria espada. 

E isso era algo bom?, perguntei-me em silêncio. 

De repente, ele virou e saímos da borda do riacho para dentro da floresta profunda. Os nossos perseguidores estavam logo atrás, babando e gritando mais do que nunca. 

A armadura parecia saber para onde ir, pois movia-se livremente pela mata, dando voltas e entrando por lugares difíceis. Isto fez com que a distância entre nós e os macacos aumentasse. 

Continuamos seguindo mais alguns metros até que ele parou subitamente. Senti que sua aura mudou e ele tinha uma seriedade que não havia antes. Sua postura era firme e inabalável. 

— O que foi? — Já imaginava que havia outro inimigo a espera logo na frente. 

— Eu me perdi. Não sei onde estamos — disse ele com uma seriedade irritante. 

— Você não disse que conhecia essa floresta como conhecia sua própria espada? 

— Há! Há! — Ele se virou para mim. — Na verdade eu perdi a minha espada há muito tempo. Não deveria confiar em tudo o que eu digo. 

Fiquei sem palavras. Não era que eu tivesse algo a dizer; simplesmente não tinha palavras para definir aquela situação. Os macacos estavam mais e mais próximos. 

— Pare de perder tempo e pense em alguma coisa! — exclamei, irritado. 

— Está bem! Está bem! Siga-me, por aqui. Acho que sei para onde ir. Rápido. 

— E se você não souber? 

— Vamos descobrir! — Ele riu alto. 

Continuamos correndo, fugindo dos símios. Mantive-me alerta, muito alerta. Ainda não conhecia as verdadeiras intenções daquela pessoa na minha frente. 

A floresta ficava mais densa. As árvores mais pareciam muros de tijolos do que árvores propriamente ditas. Em nada se pareciam com aqueles que rodeavam a minha masmorra.  

— Ainda falta muito? — perguntei, desviando de um galho. 

— Menos do que antes. É só passar daqui e seguir em linha reta. 

Cara irritante, pensei. 

Tornava-se cada vez mais difícil acompanhá-lo. Seguia-o com os olhos pelo terreno escuro, até que ele subitamente se virou numa encruzilhada. Tentei desacelerar e me virar, porém não consegui.  

Tropecei em um galho retorcido e rolei por um declive até bater de costas numa árvore ainda maior que as outras. Assim que me choquei, perdi o ar dos pulmões e minha visão ficou turva. 

Enquanto meus olhos me enganavam, jurava ter visto o sangue que pingava dos cortes no meu corpo desaparecer nas raízes daquela velha árvore. 

Não tinha tempo para pensar nos meus ferimentos. Assim que recobrei os sentidos, corri em busca do homem armadura. Sua presença desapareceu na escuridão, como fumaça em um campo aberto. No entanto os macacos ainda me perseguiam. 

Tropecei em um galho retorcido e saí rolando até bater de costas numa árvore cinzenta e de aspecto ainda mais velho que as outras.  Meus ferimentos ainda doíam, apesar de que não tinha tempo para pensar neles. 

Sem mais opções, segui na direção que ele mandou. Poderia ser muito bem uma armadilha ainda pior do que aquela que eu já estava, porém era minha única e última opção de sobrevivência. 

Minhas pernas, que já haviam quebrado todos os limites imagináveis, corriam incansáveis. Ainda estava cansado, ainda estava fraco e ainda estava ferido. Eu ainda era a mesma pessoa que há pouco tempo enfrentou um tubarão, a mesma pessoa que saltou de um precipício, a mesma pessoa que escavou por um túnel e a mesma pessoa que perseguiu um macaco pela floresta, e foi perseguida por um cavaleiro da morte. 

Sabia que aquele homem não era confiável, droga! Sabia que ele me abandonaria. Nem mesmo o conhecia, e se o conhecesse? Também ainda não deveria segui-lo. 

Subitamente meu joelho latejou forte e minha perna travou com a dor. Aquilo foi como puxar um freio de mão de um carro em alta velocidade. 

Meu corpo saiu voando outra vez, jogado vários metros para frente. Levantei cambaleante e tomei noção da minha nova visão. 

Olhando para trás estava a floresta. Conseguia escutar o som dos macacos se aproximando — prontos para terminar com a minha vida. Olhando para o outro lado, conseguia ver que havia saído da floresta de pedra, mas não tinha mais nada de reconfortante. 

Estava em um pequeno pedaço com o chão de terra negro. Poeira subia do curto restante de chão e do outro lado havia mais um gigantesco precipício. 

Mancando, arrastei-me na direção dele e olhei para baixo. Alguém conseguiria adivinhar o que vi? Como sempre, desde que cheguei neste lugar, a única coisa que conseguia enxergar era escuridão. Porém algo me dizia que aquele precipício não era como o anterior. Se eu pulasse naquele abismo, minha vida acabaria de vez.  

Game over. Sem mais uma quarta vez. 

Eu fiquei de costas para o abismo gigantesco e encarei os babuínos-coruja saírem da floresta de pedra. A grande família reunida para desmembrar um único inimigo por atacar um deles.  

Naquele ponto final, soltei um berro do fundo da minha garganta até que me engasguei com minha própria saliva. O som ressou pelo espaço, mas não assustou meus futuros assassinos — parecia até ter os atiçado.  

— Este é meu fim... — murmurei. 

— Kayn — escutei uma voz me chamar. 

— Quem está aí? — A voz vinha do precipício nas minhas costas. Era baixa, mas eu conseguia reconhecer. 

— Pule, Kayn! Pule! 

Olhei os macacos se aproximando, principalmente para aquele mais próximo, com o macaquinho no ombro.  

— Você venceu, seu macaquinho infeliz.  

Fechei os olhos e saltei. 

Senti meu corpo despencar por um tempo, até que algo agarrou meu braço. Abrindo os olhos devagar, enxerguei meu salvador. Dentro de uma caverna na parede do precipício, estava o homem na armadura negra. 

— Você está com um belo sorriso no rosto — disse ele, puxando-me para o buraco. 

Lá dentro, notei que era outro túnel. Como era pequeno, ele precisava se sentar para caber no buraco, mas eu conseguia ficar de pé. 

Fiquei parado por um tempo olhando para ele, enquanto ele via se os babuínos-coruja partiram. Gostaria de saber como o meu rosto estava naquele momento. Eu tinha um misto de emoções dentro de mim. 

— Acho que vamos precisar ficar aqui um bom tempo. O alfa não deve desistir tão fácil de você — Ele se virou para olhar para mim. — Que rosto é esse. Viu um fantasma? 

— Não, não. Eu só... achei que você tivesse me deixado para morrer. Obrigado por salvar minha vida... — Comecei a soluçar um pouco quando lágrimas surgiram no meu rosto. 

— Hm. Não é por nada não, mas eu não sou, tá. Se você é, não tenho problema algum. Até tinha amigos que eram. Só não tenta nada para o meu lado. 

Aquela quebra de expectativa fez com que todo o sentimento de agradecimento que tinha para com ele se dissipasse como fumaça. Limpei meu rosto e olhei feio para ele. 

— Você não tem senso de humor? — disse ele, batendo com os braços nas pernas.  

— Acho que perdi ele. — Mesmo o achando estranho, ele ainda era o meu salvador e também a única “pessoa” viva que encontrei neste buraco imundo. — Obrigado mesmo por me salvar. Poderia me falar seu nome agora?  

— Mas é claro! — De repente, ele colocou sua mão na cabeça e retirou o elmo da armadura, revelando um completo nada. Não havia rosto, não havia corpo, não havia nada. — Meu nome é Alonso Martin Exupéry Christie de Lewis Cervantes Dumas Allen, mas você pode me chamar apenas de Alonso Allen, o Cavaleiro sem Cabeça ao seu dispor!  



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