O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 58: Manipulação de Sangue

— Acho que eles foram embora — comentou Alonso. Ele ainda olhava para cima, enquanto escutava os passos irem embora e depois cessarem.

Ainda estava pasmo com a revelação do Alonso. Ser um Cavaleiro sem Cabeça não era algo simples que alguém poderia dizer a qualquer momento, obviamente.

Se Cavaleiros da Morte eram a elite, então Cavaleiros sem Cabeça eram a elite da elite. Talvez ele até conseguisse ter uma luta justa contra os macacos. Pelo contrário na realidade, os macacos estariam perdidos se ele levasse o combate a sério.

Aquela dúvida agora viajava dentro da minha cabeça. Se ele era capaz de derrota-los, por que então decidiu fugir comigo?

— Então você se chama Kayn, não é? — Sorriu, retirando sua cabeça e a colocando entre as pernas. — Aqueles macacos deram uma canseira danada na gente.

Com a pergunta ainda na cabeça, acabei ficando parado. Encarava feio o seu rosto. Tinha certa dificuldade em saber se olhava para o corpo dele ou para a cabeça entre suas coxas.

— Se você é um Cavaleiro sem Cabeça, por que não lutou contra os macacos? Você poderia tê-los derrotado.

— Hm. — Seu olhos piscaram numa cor vermelha. — Então você conhece minha força, não é? Mas sabe que o combate teria demorado muito e tanto barulho atrairia atenção indesejada, e além disso, os macacos poderiam jogar fezes na minha bela armadura.

— Que lugar é esse? — ignorei sua última fala e lancei uma pergunta súbita.

— Hm. Você é muito sério. Deveria sorrir mais — disse ele, batendo com uma das mãos na coxa da armadura. — Estamos no Reino dos Mortos.

— Isso eu sei! — exclamei, irritado. Logo me arrependi. Apesar de tudo, ele ainda havia me salva. — Me desculpe. Como já deve ter notado, eu não estou de bom humor.

— Está tudo bem. Contarei tudo a você, mas precisamos sair daqui o mais rápido possível. Eu não viraria comida para os macacos, mas os monstros no fundo desse abismo me comeriam vivo e não teriam diarreia.

Havia uma seriedade estranha nas palavras dele. Alonso se levantou e colocou a cabeça no lugar.

— Tudo bem. Eu vou te seguir. — Ainda havia uma pulga atrás da minha orelha. — Mas em qualquer sinal de perigo ou de que isso é uma armadilha, eu não vou hesitar em te largar e fugir.

— Ficar sem cabeça não é um problema para mim. — Ele brincou, tirando a cabeça do lugar como se fosse um chapéu.

— Você me entendeu...

— Sim, sim. Vamos logo.

Ele rastejou pelo buraco, enquanto eu segui de pé atrás. Ele tinha quase três vezes o meu tamanho em todos os sentidos. Passamos mais um tempo atravessando o túnel, até que uma luz atacou meus olhos.

Colocando a mão para impedir o brilho, consegui afinal enxergar a saída.

Alonso seguiu na frente e checou se estava tudo seguro. Segui logo depois. Outra vez estávamos na floresta de pedra, mas em algum lugar totalmente diferente.

Ao menos os Babuínos-Coruja já haviam desaparecido. Chequei a segurança do lugar para não ter mais alguma surpresa inconveniente e o cavaleiro sem cabeça fez a mesma coisa.

— Kayn — ele me chamou — respondi sua pergunta, mas você não me contou nada.

Alonso retirou sua cabeça do lugar outra vez e colocou numa das mãos.

Imediatamente um calafrio desceu pela minha espinha. Olhando-o, conseguia sentir uma aura gelada cobrir seu corpo, e o buraco dos olhos da sua armadura brilhavam nitidamente na cor vermelha.

Não poderia culpa-lo por suspeitar de mim. Pelo contrário na verdade. Se ele não desconfiasse de mim, eu desconfiaria ainda mais dele. Ser cauteloso neste abismo que estava era até pouco demais.

Meu silêncio criou um clima ruim entre nós dois, mas durou poucos segundos.

— O que você quer saber? — quebrei o gelo.

— A única coisa da qual preciso saber de verdade é se você não é uma potencial ameaça. Sabe, este lugar não é um parque divertido, como você pode ver.

Suas palavras eram um pouco estranhas. Que tipo de ameaça eu poderia ser para alguém tão poderoso, porém ainda precisava responder de qualquer forma.

Silêncio reinou de novo, mas desta vez ele que quebrou.

— Para sobreviver neste lugar, onde o coelho caça a onça, e o cordeiro se veste de lobo, você com certeza não pode ser alguém comum.

Ainda estava receoso em responder, porque não havia uma boa resposta para dar. Dizer que era uma ameaça significava morte; dizer que não seria mentira. Suspeitava que ele saberia disso.

Havia apenas uma coisa a falar:

— Sou uma ameaça para aqueles que me ameaçarem.

— Boa resposta, garoto — disse, quando parou de transmitir aquela aura gelada. — Diga-me agora...

Eu o interrompi.

— Não é assim que funciona. Certa vez me disseram que perguntas e respostas são um bem tão valioso quanto prata e outro. Você me fez uma pergunta; agora me deve uma resposta.

— Astuto como um gambá — comparou ele. — Faça sua pergunta então! Já até sei qual é.

— Onde nós estamos? E não quero aquela mesma resposta de sempre. Sei que este lugar se chama O Reino dos Mortos, mas quero a resposta certa. Que lugar é o Reino dos Mortos?

Alonso arqueou o braço, estendendo sua cabeça para frente.

— A resposta que procura já não lhe foi dada, pequeno gambá? Ela já não está profundamente gravada na sua mente? A aparência daquele que comanda os mortos. No entanto ainda o entendo. Sei que quer a confirmação definitiva. — Ele ergueu o outro braço, como se desse boas-vindas à mim. — Neste exato momento, estamos na Floresta Morta, o tricentésimo quinquagésimo sétimo andar da masmorra do Louco Rei Lich. Seja bem-vindo ao Reino dos Mortos, Kayn!

Os pesadelos que me assombravam acabavam de se confirmar. Quando ele estendeu o seu esquelético dedo na minha direção e lançou aquele feitiço de pura escuridão, não era uma magia ofensiva que me levaria a morte. Não era qualquer coisa do gênero.

De alguma forma, o maldito havia me carregado. Ele me trouxera para cá. Para a sua maldita masmorra!

— Por quê...? Qual razão teria...? — Gargalhei subitamente. — Por que ele me trouxe para cá?! O que ele quer de mim?

Ainda poderia entender se fosse Baal ou Azazel que desejavam ter conhecimento sobre os poderes que convergiam dentro de mim, ou até o desgraçado do Amadeus que havia comprado todas as minhas poções, mas não.

Havia sido a porra da caveira humana. Aquela merda de puro osso do caralho. Por que aquele desgraçado me pegou? O que ele quer de mim?!?!?!

Minha gargalhada incessante não parou.

Alonso recolocou sua cabeça, fechou os braços. Fez um gesto negativo na minha direção. Ele não saberia responder.

A gargalhada logo esfriou, tornando-se um choro baixo que logo se transformou em socos sangrentos contra o chão de terra negra. Meus punhos soavam fracos, mas ainda criavam alguns buracos no chão e o sangue pintou a lama de vermelho.

Frustração carregava cada um dos ataques.

Soquei mais algumas vezes até sentir uma mão tocar meu ombro. Ela era dura e fria, mas, naquele momento, muito reconfortante.

— Depois você deve extravasar o quanto quiser, faz até bem para saúde, mas agora é preciso ir. Este lugar é perigoso e você precisa tratar esses ferimentos. Principalmente este corte no braço.

Segui para onde ele apontava, quando me acalmei um pouco. Vi que era a ferida causada pelo Cavaleiro da Morte. Ainda não havia se curado e tinha uma coloração roxa, e às vezes ela voltava a sangrar.

Por sentir uma dormência na área, acabei por não dar atenção alguma.

Alonso estendeu uma mão para ajudar a me levantar, e logo nos guiou por um caminho entre as árvores. Fiquei olhando-o enquanto viajamos.

Cavaleiros sem Cabeça eram quase como unicórnios, até mesmo em Vanglória. Possuíam talento mágico superior aos Cavaleiros da Morte.

Sua inteligência também era maior, e eles tinham a incrível capacidade de sobreviver mesmo que suas cabeças fossem arrancadas do corpo. Elas eram seu único ponto fraco.

O resto das suas capacidades estavam a par com qualquer Cavaleiro da Morte. Entretanto eles também era conhecidos pela crueldade e os resquícios de loucura que a alma corrompida dos seus corpos deixava para trás.

Crueldade era uma palavra muito forte para descrever o Alonso, mas uma coisa ele realmente era um pouco. Pouco? Não.

Ele era completamente louco.

Depois de passarmos por uma área completamente diferente da floresta, chegamos em um lugar conhecido. Voltamos ao córrego, e eu logo tentei beber um pouco de água, mas Alonso estendeu o braço, impedindo meu caminho.

— Olhe mais adiante, Kayn — disse, apontando para mais acima do rio.

Perto da margem, próximo de algumas rochas, estava um Babuíno-Coruja bebendo da água. Sua respiração era pesada e havia um sangramento na pata traseira esquerda.

— Deve ter se ferido durante a perseguição — comentei, prontamente me escondendo atrás de uma árvore.

— Concordo com você. — Ele então também se escondeu. — Seu ferimento o atrasou, mas os outros não devem estar longe. Podemos matá-lo, mas temos que ser cuidados, senão ele irá alertar os outros. Sou tão bom com ataques furtivos quanto um elefante com gigantismo, então você que vai ter que matá-lo.

Precisava concordar com ele. Quando nos conhecemos, ele havia tentado capturar o pequeno macaquinho escandaloso, mas era tão sútil quanto um carro alegórico.

— Vou dar a volta por entre as árvores para caso ele suba o rio. Você segue pelas rochas e deve conseguir pegá-lo de surpresa.

Fiz como ele disse. Enquanto ele subia o rio pela floresta, eu fui pela margem, usando as pedras para me disfarçar. Era a melhor estratégia que nós poderíamos pensar, apesar de arriscada.

Qualquer barulho poderia me entregar.

Mesmo que ele fosse menor que o alfa, ainda tinha um tamanho considerável. Além do mais, seus braços longos e os dentes afiados ainda eram bem ameaçadores.

Ele ainda estava inerte bebendo água. Conforme me aproximava, tentava fazer ainda mais silêncio, no entanto o destino era uma amante cruel. Por manter tanta atenção nos movimentos do monstro, acabei pisando em um galho.

Imediatamente escondi meu corpo atrás de uma rocha e vi o Babuíno-Coruja investigar o ambiente com os olhos. Prendi a respiração quando ele olhou diretamente na direção da rocha na qual eu estava escondido.

Após mais algumas investigações, ele voltou a beber do rio. Sua guarda, porém, ainda estava bem mais alta. A situação ainda não havia sido de todo o mal, porque poderia pensar numa forma de o eliminar sem causar mais trabalho.

Vasculhando minhas habilidades e meu arsenal a disposição, descobri não ter grandes opções. Ainda não conseguia usar magia, apesar dos meus estudos teóricos. Mas eram apenas isso: teorias. Ainda não tinha prática.

Minhas outras habilidades não tinham serventia sem uma arma, mas ainda havia uma opção que ainda não tinha tido a chance de usar.

Manipulação de Sangue.

Aproveitando da distração do animal, subi em uma das rochas sem que ele tenha notado. Assim que ele arqueou o corpo após terminar de beber, saltei nas suas costas, agarrando seu pescoço com um dos meus braços.

Imediatamente ele tentou desprender-se do meu aperto, tentando morder e arranhar meu membro com suas garras. Contudo eu não soltei e com o outro braço, apontei para a perna ferida dele e disse:

— Manipulação de Sangue! — Nada aconteceu.

Por ficar pasmo por alguns segundos, o Babuíno-Coruja teve chance de recuperar-se do choque inicial, levantando seu corpo e correndo para trás, contra uma das rochas.

Recebi um golpe forte quando meu corpo bateu contra a pedra sólida, mas ainda não soltei meu aperto.

Seus longos braços se moveram e ele os usou para arrancar sangue das minhas costas. Neste momento, tentei outra vez.

— Manipulação de Sangue!

Uma fraqueza imensa me abateu e os meus olhos reviraram quando o sangue escapou pelas feridas nas minhas costas e atravessaram como lanças o corpo do Babuíno-Coruja.

Em seguida, perdi minhas forças e soltei meu aperto. Cambaleei alguns passos para trás, totalmente esvaído de energias. Ainda vi o monstro dar alguns poucos espasmos antes das lanças se liquefazerem em sangue e ele cair no chão.

Infelizmente, eu também apaguei.



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