O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 59: Primeira Impressão

Acho que nunca estive tão cansado em toda a minha vida. Na verdade, em nenhumas das duas vidas. 

Foram dias de caminhada, corrida, lutas e fugas. Dias sem ter nada para comer, ou beber. Quando finalmente consegui saciar minha sede e ter algo para esquentar o estômago, nada mais que uma migalha, voltei a ter que fugir, correr e lutar. 

Cada fibra do meu ser estava gasta, e cada músculo sofria, enquanto minhas feridas ainda abertas rastejavam pela lama. 

Quando poderei descansar? O que preciso fazer para enfim descansar? 

Ainda meio desacordado, senti um toque gelado me segurar. Senti meu corpo ser carregado, balançando de um lado para o outro, enquanto uma voz dizia-me para aguentar firme. 

Pouco depois, desliguei outra vez. 

Durante aquele tempo, minha mente alternava entre sonhos e pesadelos, viajando entre ver o rosto daquela mulher, e os terríveis buracos negros do Louco Rei Lich. Vez ou outra, voltei a ter consciência, escutando não mais uma única voz, mas sim duas. 

Reconhecia a voz masculina como sendo do Alonso, mas havia uma outra desconhecida voz feminina. 

— O sangramento dele parou, e tratei a maior parte dos ferimentos, mas a infecção no braço dele e a febre alta não diminuem, mestre. 

— Faça o que puder, Alice. Não o deixe morrer aqui. 

— Tentarei, mas ele precisa acordar, senão não poderei dar de comer a ele. E você realmente quer que ele sobreviva. Ele não será mais outro estorvo? 

— Esse gambá, acho que ele é diferente. Confie em mim. Sei ler as pessoas, assim como sei manejar uma espada. 

Eu acho que já escutei algo parecido antes, pensei, pouco antes de apagar de novo. 

Normalmente ao apagar deste jeito, encontrava-me com meu velho conhecido, o outro eu, a Mente Serena. Ele, entretanto, não havia dado mais sinais após meu confronto com Gregórios. Contudo o silêncio era ainda mais assustador, levando em conta o fato da habilidade estar quase no máximo.  

Maldita Mente Serena... 

— O que você quer de mim?! — Acordei aos gritos. 

Encontrava-me sentado numa cama de palha seca no chão, com alguns lençóis sujos por debaixo do meu corpo e um que cobria minha cintura. Antes de acordar, provavelmente estava coberto por eles. 

Olhei minha aparência, vendo que meus ferimentos tinham sido tratados, mas ainda sentido dores pelo corpo, principalmente no braço. Também percebi que minhas roupas foram trocadas. Vestia uma camisa de couro fino amarronzada, amarrada por um cadarço, e uma calça da mesma cor. Não daria falta das roupas antigas, pois, apesar de serem um presente, estavam em trapos. 

Investiguei o ambiente, procurando qualquer sinal de ameaça. Provavelmente havia sido Alonso que me trouxera, mas também não havia rastro dele. 

As paredes eram de madeira e era até que bem espaçoso. O teto era de pedra, assim como algumas outras partes. Havia um cobertor separando um pequeno espaço, cadeiras rústicas e uma mesa. 

Meus olhos, porém, focaram-se apenas num objeto no canto. Tinha uma forma incomum, mas a lenha queimando embaixo não poderia me enganar: um fogão. E logo em cima havia uma grande panela de barro avermelhada, por onde escapava uma fumaça branca e uma fragrância saborosa.  

Usando toda força que tinha, mesmo com dores, corri até a panela fervente. Cuidadoso, a abri, quase como com medo de que fugisse de mim, mas acabou que se revelou como um suculento cozido de carne. 

Sem pensar duas vezes, coloquei a panela ainda quente sobre a mesa. Queimei as pontas dos dedos, porém não importava. Achei um objeto pendurado na parede que serviria de colher e comecei a comer. 

Eu era cauteloso, ainda mais neste buraco. Contudo não tinha qualquer precaução ao devorar o máximo daquele alimento que eu poderia. 

Se tivesse veneno? Não importava. Nem lembrava da última vez que havia tido uma refeição completa. 

E aquela comida estava... 

— Deliciosa — disse, quando as palavras escaparam da minha boca. 

Desde que revive nada além do sangue parecia ter um gosto saboroso. Toda a comida que eu provava deixava um gosto de vazio na boca. Porém aquela comida era diferente. Não havia nada de especial naquele prato, mas ele era incrivelmente delicioso. E finalmente saciei minha fome após comer mais da metade da grande panela.  

Limpei minha boca sem me importar com a higiene e me levantei. Meus olhos procuraram pelas poucas coisas que eu carregava comigo: a armadura vagabunda que arranjei, o dente de Tubarão-Polvo e a Pedra de Mana. 

Mesmo procurando por todo lado, ainda não achei. Virei minha atenção para o cobertor que separava um dos cômodos da cabana. Me aproximei com cautela e olhei o outro lado. 

Havia uma cama improvisada recostada na parede de pedra, com alguns lençóis dobrados cuidadosamente, e uma pequena mesa de cabeceira bem cuidado. Era como um quarto de uma criança comportada. 

Adentrei mais, acalmando meus ânimos e ficando curioso com aquilo. Precisava pensar direito. 

Alguns desenhos estavam pendurados na parede que recostava a cama. Estendi a mão para tocá-los, sujando a ponta dos meus dedos de preto. Provavelmente por terem sido desenhados com carvão. Eram desenhos simples e infantis, como árvores, animais e flores. Alguns eram macabros, como desenhos de zumbis e esqueletos, mas talvez fosse apenas pela convivência de quem os desenhou. 

— Que lugar é esse? — questionei, pegando uma das artes que se destacava das restantes. 

Ela tinha cores, não fora feita com carvão. Havia uma pequena garotinha de olhos vermelhos em destaque em um campo aberto, segurando a mão de uma mulher e de uma gigantesca armadura negra. 

— Alonso? — reconheci rapidamente. 

Além disso, havia desenhado no céu uma grande lua e várias estrelas brilhando na noite escura.

Quem são essas pessoas?  

Após colocar o desenho no lugar, percebi um brilho vindo debaixo da cama. Abaixei, vendo uma bolsa e um colar perolado redondo. Dentro da bolsa, estavam todas as minhas coisas, mas infelizmente não achei a armadura.  

Fui logo em direção a saída, tentando escapar dos meus possíveis captores. 

Todo cuidado era pouco. 

Fui até a porta e a abri, atacado por um brilho forte. Quando meus olhos se acostumaram com luz, tive um vislumbre do lugar. 

Havia grama sob meus pés, conseguia escutar o som de água escorrendo e o ar era leve, com uma brisa suave e um perfume agradável de flores. Era um ambiente amplo, com um teto altíssimo, além de que, ao longe, conseguia ver um cristal brilhante que iluminava até onde meus olhos poderiam ver, senão até mais. 

Atrás de mim, tinha uma larga parede de rocha que se estendia de um lado ao outro, com uma pequena fresta do lado esquerdo por onde escorria a água de uma nascente. Dentro de outro buraco, bem maior, a cabana onde eu estava havia sido construída. 

Se não fosse por aquela parede de pedra, diria que enfim havia escapado da masmorra. Mesmo assim, aquele lugar era totalmente diferente de tudo o que havia visto desde que cheguei aqui. 

Assustado, dei o primeiro passo do lado de fora. E andei até um canteiro onde realmente havia algumas flores florescendo. Abaixei, olhando suas belas e místicas cores. Eu não reconhecia nenhuma delas. 

— Realmente... que lugar é este? 

Segui na direção da água e me abaixei para tocá-la. Surpreso com tudo, não consegui esconder um sorriso que surgiu no meu rosto, até o meu rabo balançava de um lado para o outro.  

Coloquei minha mão sob a água, sentido o fluxo do rio escorrer entre meus dedos. Era bem agradável, até que vi pelo canto dos olhos que havia alguém do outro lado. Levantei-me, olhando para ela e ela olhando para mim.  

Usava um vestido vermelho e preto simples e de fácil movimento. Sua pele era amorenada, mas bem pálida. Seu cabelo negro era longo e liso, caindo sobre o seu pequeno nariz e separando seu rosto. 

 Os olhos eram gigantescos e de uma cor carmesim vibrante, que combinava com seus lábios também vermelhos. Ela tinha longos cílios e até suas pálpebras eram vermelhas, logo abaixo das duas longas sobrancelhas finas. 

Acima da cabeça, havia duas pequenas coisas que a princípio pensei serem chifres, mas ao ver direito percebi serem um par de pequenas asas de morcego que mais pareciam ornamentos carmesins. 

Era hipnotizante olhar para a sua bela aparência, mas também era impossível não notar sua sede de sangue. Imediatamente levantei a guarda, enquanto ela me avaliava. 

Seus olhos percorriam todo o meu corpo, parando na minha mão. Eu ainda carregava comigo o colar que encontrei debaixo da cama. 

A mulher de vermelho focou-se somente naquilo, quando suas unhas cresceram devagar até ficaram maiores que um antebraço, e ela cruzou o rio num instante. 

Pude apenas dar um passo atrás, desviando por pouco das afiadas garras dela. 

— Espere um minuto — tentei conversar com ela, mas fui ignorado. 

Ela partiu para a ofensiva, atacando-me com suas garras. Desviei para a direita, depois me abaixei de outro golpe, e depois dei um passo para a esquerda. Era difícil sequer pensar naquela súbita situação. 

Sua expressão era raivosa, mas seus ataques não eram descuidados. Ela sabia muito bem o que estava fazendo. Ela se aproximou para atacar de novo, e eu baixei meu corpo para desviar ou defender. Neste instante, sua postura mudou. 

Percorreu nossa distância antes que eu sequer pudesse piscar, desenhando uma linha branca no ar com suas garras. Foquei toda minha atenção nelas. De súbito, senti meu corpo ser acertado por um coice, quando ela arqueou uma das pernas, chutando-me diretamente no peito debaixo para cima. 

Automaticamente perdi meu ar. Com meu corpo ainda no ar, antes mesmo de atingir o ápice do voo, ela girou nos próprios pés, chutando-me de frente com a parte de trás das pernas impulsionadas pelo furo. 

Eu fui arremessado para trás, rolando pela grama sem reação. 

O poder daquela mulher de vermelho era realmente assustador. 

Seus passos eram leves e sua postura indicava que seus ataques viriam de cima, mas suas pernas, escondidas pelo vestido, eram a verdadeira arma. Notei o quão forte elas eram tarde demais, e acabei prestando atenção apenas nas garras. 

Apoiei meu corpo derrubado com uma das mãos, vendo-a se aproximar com as sobrancelhas enrugadas e mordendo os dentes. O que eu tinha feito a ela para estar com tanta raiva de mim?  

Não queria ter que usar essas duas habilidades, ainda mais por estar me recuperando. Contudo minhas opções acabaram. 

— Força Monstruosa! Velocidade Monstruosa! — cantei o nome das duas habilidades. 

❂❂❂ 

[Habilidade: Velocidade Monstruosa] Ativada 

Estatísticas de Velocidade Triplicará pelo período de 3 minutos 

[Habilidade: Força Monstruosa] Ativada 

Estatísticas de Força Triplicará pelo período de 6 minutos 

❂❂❂ 

Com a explosão de poder percorrendo meu corpo, levantei-me do chão num instante. Como eu estava transformado da primeira vez que usei a Velocidade Monstruosa, não havia notado, mas o mundo inteiro parecia mais lento. 

Não. Era justamente o contrário. Eu que estava muito mais rápido. Ainda assim, os movimentos da mulher de vermelho haviam apenas se igualado aos meus.  

Tinha pouco menos de 3 minutos para acabar com a luta, portanto não perderia mais meu tempo surpreso com meu súbito ganho de poder. Das últimas duas vezes que fiz isso, sofri das consequências gravemente. 

Uma aura assassina poderosa me atacou, quando ela se preparou para me eliminar. Reagi de maneira igual, consertando minha postura. Nós dois nos movemos para o ataque ao mesmo tempo, enquanto eu torcia para que meu ganho de poder pudesse surpreendê-la de alguma forma. 

Meu punho voou em direção ao seu rosto, enquanto as garras dela voaram em direção ao meu, mas um segundo antes de nossos golpes acertarem, tive um vislumbre de uma armadura negra. 

De repente uma mão tocou meu pulso e jogou meu corpo para um lado, dissipando meu ataque no vazio. A mesma coisa aconteceu com a mulher de vermelho. 

De costas, escutei uma voz familiar. 

— Parece que vocês já estão se conhecendo — disse Alonso, segurando o ataque da mulher de vermelho. — Alice, primeiras impressões são importantes. Por que tentou matar nosso convidado? 

Olhei para o rosto irritado da mulher de vermelho que agora sabia se chamar Alice. Ela me encarou com seus olhos vermelhos assassinos. 

— Ele roubou meu colar — disse ela. 

— Kayn — chamou Alonso — devolva o colar para ela, antes que ela te mate. 

Rapidamente me lembrei do objeto, percebendo que ainda o segurava com uma das mãos. 

— É isso o que você quer — falei, levantando o colar. — Você tentou me matar por causa disso? Era só pedir de volta... 

— Cala a boca e devolve logo, Kayn! — Alonso estava sério demais. 

Não discuti mais. Engoli meu orgulho e joguei o colar para que Alice pudesse pegar. Ela o agarrou e o guardou cuidadosamente. 

Um silêncio então percorreu o ambiente, enquanto nos três nos olhávamos. A expressão no rosto de Alice ainda me dizia que ela poderia me matar a qualquer momento.  

Quem quebrou o silêncio foi o Cavaleiro sem Cabeça. 

— Bem, vamos entrar. Precisamos conversar. 



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