O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 60: Plano de Fundo

Do outro lado da mesa, conseguia vê-la sentada de frente para mim. Ainda tinha uma expressão irritada no rosto, como se eu tivesse assassinado um parente próximo. Alonso se sentava entre nós dois no meio da mesa, de braços cruzados e cabeça erguida. Ele pensava em algo. 

Eu estava na outra ponta da mesa, encarando em silêncio os dois, intercalando os olhares entre eles. O clima era tão confortável quanto uma sauna quente. Se eu tivesse uma faca, talvez pudesse cortar o ar com ela. 

— Acho que serei eu que terei de começar a falar, né? — disse Alonso, suspirando no final. 

— Pelo menos você começa conversando, ao invés de partir para arrancar minha cabeça fora — falei, cruzando os olhos com a mulher. 

— Eu nunca invadi o quarto de ninguém para roubar suas coisas — respondeu ela, em tom de deboche. 

— Podemos resolver esse problema agora, se você quiser. 

— Eu adoraria! — Ela bateu com ambas as mãos sobre a mesa. 

— Comporte-se, Alice! — esbravejou o Cavaleiro sem Cabeça.  

Até não poderia ver sua expressão por debaixo do elmo negro, se é que possuía uma, porém o tom de sua voz era como o de um verdadeiro comandante de batalha. Sua seriedade não poderia ser ignorada. Ele então virou-se para mim e ainda concluiu: 

— Chega de discussões infantis e bate bocas idiotas. Isto serve especialmente para você, desconhecido Kayn. Salvei sua vida, e mais de uma vez. E você deve saber que posso tirá-la com ainda mais facilidade. 

Uma ameaça clara. Mordi os dentes, estalando a língua. O mestre mais poderoso de Vangloria, rebaixado a um simples cachorro obediente, mas era fato. Eu estava em dívida e ele era absurdo de mais forte. 

— Você está certo — baixei a bola. Mais do que tudo, precisava dele para compreender o quão fundo era o buraco que eu estava. Ele também sabia como sobreviver neste buraco. Sozinho neste lugar eu acabaria ficando mais louco do que já era. — E então o que você quer tanto discutir comigo? 

— Antes de qualquer discussão, quero lhe apresentar... — falou, apontando para a garota — Alice, minha pupila. 

Ela revirou os olhos, cruzando os braços para mim. 

Por um reflexo, usei minha habilidade Olhos da Ambição sem pensar muito. 

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[Habilidade Olhos da Ambição] Ativada 

A Ambição do Usuário é pouco menor que a do alvo. 

É possível ver suas informações, porém com muitas limitações 

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[Informações] 

Nome: Alice Black 

Raça: Vampira Primordial | Nível ??/?? 

Raridade: Ancestral | Grau: ?? 

Emblema: Vampiro | Primordial | Sombras 

[Habilidade: Olhos da Ambição] subiu de nível 

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Antes de sequer pensar em qualquer coisa, fiquei pasmo. Quando pisquei meus olhos, as garras de Alice estavam a poucos milímetros de arrancar meus olhos. 

— O que você fez? — questionou ela. 

Minha mente ainda estava em transe. Aparentemente ela percebeu o uso da minha habilidade ocular, mas a única coisa que conseguiu escapar da minha boca foi: 

— Você é filha de Amadeus Bla...? — Meu corpo foi jogado para trás por Alonso, que se colocou como um escudo na minha frente. 

— Nunca mais diga esse nome! — exclamou Alice, presa pelo Cavaleiro sem Cabeça. — Se ousar falar de novo, arranco sua língua fora. 

Eles tinham o mesmo sobrenome. Era impossível ser uma coincidência, mas como? Vampiros Primordiais eram criaturas únicas que nasceram junto do mundo. Era assim que Vangloria os tratavam. Eles não deveriam poder simplesmente nascer. 

— O que está acontecendo aqui, Alonso. Foi Amadeus que ordenou que eu viesse para cá. Amadeus... 

— Cale a boca, Kayn. Cale a porra da boca, ou eu mesmo irei arrancar sua língua! — ameaçou Alonso. Reconheci o peso naquelas palavras e me calei. 

Alonso segurou os impulsos de Alice mais um tempo até que ela se acalmou, e os dois voltaram para os seus lugares. Levantei, limpando minhas roupas e também sentei. 

O clima do ambiente voltou ao gelo absoluto, mas desta vez quem quebrou foi Alice. 

— Eu tenho o nome dele, mas eu não o considero meu pai. Não temos relação alguma — disse ela, com uma expressão mista de raiva e angústia. — Como você descobriu meu sobrenome?  

Droga! 

— Eu tenho uma habilidade capaz de me comunicar com O Criador. Ela me mostra algumas informações de alvos. 

Temia ser morto caso mentisse, então expliquei como os Olhos da Ambição funcionavam de uma maneira que eles entendessem.  

Os dois trocaram olhares, e Alonso concordou com a cabeça. Fiquei aliviado, mas me mantive impassível. 

— Vou voltar às apresentações então — falou Alonso. — Alice, este é Kayn. Um jovem que encontrei na floresta de pedra, como já te contei. 

Ela revirou os olhos como se já soubesse disso, mas ainda me cumprimentou por cortesia. Estava um pouco mais calma.  

Naquele momento, pude notar o quão maravilhosamente linda ela era. Além da pele morena, ela também tinha covinhas. Gostaria de ver como ela era sorrindo. 

— Pare de me encarar. — Alice fez uma expressão de desgosto, e eu notei que realmente a estava encarando. 

— Desculpe. E então, Alonso. O que quer conversar comigo? 

— Eu tenho um plano para fugir desse buraco, e precisamos de alguém para nós ajudar. — Alonso apertava firme os punhos. 

— Eu não gostaria de concordar com isto, mas não temos outra escolha para escapar daqui. 

— Também adoraria fugir desse lugar — falei com franqueza —, mas como posso confiar em vocês dois? Como saberei que isso não é uma armadilha? Que vocês não irão me largar aqui?  

— E como nós saberemos que você não o fará? — interrogou Alice. 

Um silêncio voltou a permear o ambiente. 

— Kayn, espero que você entenda uma coisa. Esse lugar é pior que o inferno. Você está aqui há quanto tempo? 

— Há alguns dias. 

— Nós estamos aqui há décadas. — O peso nas palavras dele era assustador. — Somos prisioneiros daquele que você chama de Rei Lich. Prisioneiros que nem sequer sabem porque estão presos neste lugar. Queremos sair daqui e eu faria qualquer coisa para nos ver livres desse lugar, até confiar minha vida a um desconhecido. 

— Está tudo bem. — Ainda tinha minhas suspeitas, mas não faria mal escutar. — Conte-me seu plano de fuga... 

❂❂❂ 

Sentei recostado numa pedra. Passei a mão na grama, gostando da sensação de calmaria e de escutar a água fluindo. Busquei algumas pedrinhas, arremessando-as no riacho. Ainda processava o que Alonso havia me dito. 

Até que esse lugar é bem agradável. 

Alonso detalhou cada aspecto da masmorra conhecida pelos dois. 

A Floresta Morta era o 357 Andar da Masmorra, segundo algumas análises que eles fizeram. Conforme disseram, aparentemente este era um lugar seguro. Claro, seguro entre muitas aspas. 

Estávamos numa intersecção entre o Andar 357 e 356. Era um lugar onde monstros não apareciam com frequência e havia um córrego. Eles acabaram descobrindo por sorte e fizeram sua base aqui. 

Eles não sabiam exatamente qual era o tamanho da masmorra, mas acreditavam ter cerca de 1000 andares. Os monstros mais poderosos ou guardavam os andares mais altos ou os mais profundos, onde estava o Núcleo da Masmorra e o temível louco Rei Lich. 

Não havia criaturas tão poderosas por perto, mas eles ainda eram monstros imprevisíveis, portanto era possível ter encontros assustadores como aquele que eu tive com o dragão. Se eu pisasse em algum lugar errado, também poderia dar de cara com um chefe de andar. 

Contei a eles sobre meu encontro com o Cavaleiro da Morte, ocultando os detalhes sobre o misterioso portal.  

Das informações que me deram, Cavaleiros da Morte não ocupavam esses andares. Eles circulavam pelo abismo, o gigantesco buraco que ficava no precipício da Floresta Morta e era como um túnel direto para os andares mais profundos. 

Eles não sabiam bem o que havia por lá. 

Descer demais a masmorra seria uma tarefa impossível, entretanto subir também era. Estávamos numa grande zona branca, que era cercada de zonas vermelhas e pretas. Um círculo relativamente seguro dentro daquela masmorra colossal.  

Ainda assim, Alonso tinha um plano. Rapidamente me lembrei da conversa. 

— Existem portais de teleporte a cada 100 andares. Eles levam para qualquer andar da masmorra e também são capazes de levar até para alguns lugares fora dela — explicou o Cavaleiro sem Cabeça e eu poderia confirmar isso, lembrando que em Vangloria isso também ocorria. — Mas para operá-los é necessária uma terceira pessoa. 

— Nós viajamos até o 400 Andar antes, porém apenas para descobrir que ele era inútil sem alguém. — Ela bateu com o punho na mesa, parecendo lembrar-se com dor de algo. 

— Exatamente. Por isso precisamos de você, e você precisa de nós. Se não, nunca sairemos desse buraco. 

— Então precisamos apenas viajar até o andar 400 e estaremos livres? — questionei, sentido que havia algo de errado. 

— Não — falou Alice, olhando-me com seus grandes olhos vermelhos. — O portal do andar 400 foi destruído durante nossa tentativa de fuga. Mal saímos vivos de lá. 

— Então vocês querem subir até o andar 300? 

— Exatamente, porém não ache que a viagem será mais fácil. Muito pelo contrário. E então, quer ir conosco? — Alonso estendeu a mão para mim, e eu a olhei por um segundo. 

— Eu quero pensar um pouco sobre isso... 

Passaram-se algumas horas enquanto eu estava sentado na borda do riacho, jogando pedras na água. Estava realmente pensando se seguiria com eles, ou simplesmente desistiria de uma vez. 

Durante minha primeira vida, realmente não tinha muitas razões para viver. Mesmo quando obtive a maior conquista da minha vida, ainda me vi entediado. 

Durante minha segunda vida, acabei me divertindo bastante. Conheci servos novos e até alguém que realmente daria sua vida por mim. Ainda me perguntava se Cristal estava bem. Entretanto vim parar neste buraco. 

Por que eu deveria continuar? As coisas serão tiradas de mim de qualquer forma. Sei muito bem disso. 

Joguei outra pequena pedra no riacho. Surpreendentemente ela não afundou, mas chocou-se contra a água mais três vezes até cair do outro lado na grama. 

Boquiaberto, meus olhos brilharam. 

— Kayn, tomou sua decisão?  

Olhei para trás, ainda sentado na grama. Alonso estava de pé e logo atrás estava Alice. 

Eu estava desmotivado e sem objetivo, porém eu ainda era aquele tipo de pessoa que não ficaria feliz vendo alguém me olhar de cima da forma como o Rei Lich e Amadeus olharam.  

Queria frustrá-los mesmo que um pouco. Não os deixaria se aproveitarem de mim. Durante a viagem, tentaria descobrir uma forma de contornar essa situação. Uma maneira de sair deste literal e subjetivo buraco. 

— Tomei — falei, erguendo a mão. Alonso ajudou a me levantar e apertei sua mão firme. — Nós fugiremos daqui juntos! 

— Gostei de ver! Mas por favor, Kayn, tome um banho. Você fede como um bicho morto! 

 



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