O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 20: Um encontro fortuito

Para minha surpresa, a sala estava vazia, com exceção da Guinevere, sentada ao centro do cômodo. Ela parecia desesperada enquanto guardava papeis e arrumava suas coisas. Pela primeira vez, vi seu cabelo meio bagunçado. Quando seus olhos se conectaram com os meus, ela tomou um susto e logo abriu um caloroso sorriso tímido.

— Flamel! — Ela acenou a mão.

Que menina carinhosa.

— Guinevere! — Ri e caminhei até ela, que parou de guardar suas coisas. Ao chegar nela, disse: — quer ajuda para guardar as coisas?

E-eh? — Ela olhou para as pilhas de papeis. — Ah, isso! Não se preocupe. Já termino. Obrigada.

Guinevere retornou a organizar os pertences para dentro da mochila sem amassá-los, seus olhos me ignorando a não ser por olhadelas rápidas. Observando as folhas, notei que eram documentos extensos e densos, parecidos com coisas jurídicas da Terra.

— O que é isso? — Apontei para um deles.

— Ah. São papeis da senhora Hayek. — Ela ajustou uma mecha do cabelo para trás da orelha.   

Parece que a imagem de “estagiário escravo” não é só da Terra. A ironia me fez sorrir.

— Não me diga que é você quem lê tudo, assina por ela o que for de pouca importância, encaminha para ela o que é importante, e depois faz um resumo de tudo que fez?

Os olhos dela me fitaram com surpresa escancarada.

— C-como você...

— Então... — Ri e andei para mais perto. Peguei os papeis e comecei a lê-los. — Deixa eu te ajudar — falei, notando que as folhas já estavam marcadas, algumas com “A”, outras com “B”, “C” ou “D”.

— Ok... — A voz dela era baixinha. — Aqui, nessa parte da mochila, estou guardando os documentos que classifiquei como “A”, que são os que ela precisa de tomar decisões importantes. — Ela apontou para um dos compartimentos internos. — Já aqui é para “B”; esse, para “C”, e esse outro para “D”.

— Ok. — Comecei a colocar os papeis cuidadosamente junto dela.

— Obrigada...

Algumas vezes, nossas mãos se tocavam, e notei que ela ficava meio nervosa com isso. Será que-

— Aliás... — Ela olhou para mim, as bochechas meio vermelhas.

Hm?

— Você...

Ela colocou a mão na minha testa. Senti sua pele quentinha e confortável... Essa sensação se espalhou pelo meu rosto, pela minha cabeça, envolvendo-me como um abraço gentil e delicado. Seu perfume suave me relaxava ainda mais.

— O que...

Shhh. — Ela se aproximou de mim e me abraçou, trazendo minha testa ao seu ombro com gentileza, abraçando minha cabeça. — Está tudo bem. Você está cansado, não está?

— Eu...

— Está tudo bem, Flamel — sussurrou ela no meu ouvido. — Só feche os olhos e relaxe...

Fechei os olhos, e aquele calor me preencheu por inteiro. Era como se flutuasse em um oceano de um calor doce e suave, numa tranquilidade que penetrava cada fibra do corpo.

Como quando se dá água ao sedento, eu queria mais e mais daquele sentimento. Abracei-a de volta, apertando-a forte, como se isso fosse multiplicar a sensação.

O tempo flutuou. Dei-me conta disso quando a senti acariciando minha cabeça, despertando-me do transe reconfortante.

— Pronto, Flamel. Pode abrir os olhos.

O fiz e, nesse momento, vi uma aura azulada cristalina que resplandecia ao redor de seu corpo. Aos poucos, aquele brilho se desfazia, até ficar na minha frente apenas a usual Guinevere, um pouco suada, com um sorrisinho simpático.

— Como você se sente? Menos cansado? — disse Guinevere.

Somente então prestei atenção no meu corpo. Eu estava bem, incrivelmente bem; meu sono desapareceu, o cansaço foi substituído por um grande vigor que clamava dentro de mim por mais movimento. Como...

— O que você...

— Apenas usei um pouco do meu dom. Não gosto de te ver cansado assim.

Encarei-a com espanto; ela sorriu de volta com aquela face meiga. Por um instante, me deparei com o absurdo de uma alma boa, que verdadeiramente me quer bem, e que não transmitia nada além de paz e conforto.

Isso chegava a ser impensável. Em um mundo onde todos querem tirar proveito, onde há tantos perigos, ela se fazia calor que aquece a alma, como um abrigo seguro e confortável.

Guinevere recuou um passo para trás, colocou os últimos papeis dentro da mochila e a pendurou no ombro. Sua atenção se voltou de novo para mim e falou:

— Vamos?

— Para onde?

— Para a aula. — Ela riu. — Não sabia que a aula da senhora Hayek hoje vai ser de novo fora? Dessa vez, será no salão de treino de combate, junto do professor Dung.

— Isso explica por que não tem ninguém aqui. E... salão de treino de combate?

— Sim! — Ela sorriu e andou à frente. — A gente só foi lá uma vez no primeiro período. Vem, vou te mostrar onde que é.

Guinevere, andando próxima de mim, me guiou para fora da sala. Não pude deixar de notar o quão estufada estava a mochila com todas aquelas pilhas de papeis.

— Posso levar? — Apontei para a alça da mochila.

— Hm? Ah, não, está tranquilo. — Ela sorriu.

Olhei para o chão e foquei minha visão nos meus passos. O que eu deveria falar? Será que-

— Você é gentil assim com todo mundo? — disse ela.

Eh? — Minha atenção se voltou para seu rosto, o qual encarava o chão também. — Não sou gentil assim. Você é muito mais. — Ri um pouco e ela também. Nossos olhos se encontraram. — Tento ser um pouco assim também, mas confesso que é bem mais fácil com alguém que é tão simpática como você.

Ela sorriu e nada disse de volta. Não pude deixar de ficar feliz também, vendo-a daquele jeito, e seguimos pela praça após sair do prédio das aulas.

Pensando bem, quando acordei na enfermaria, era ela quem estava lá. Nem a Violette, Dolgan ou Aithne. Ela. Por algum motivo, ela se preocupava comigo, e era tão fofa...

Encantadora assim ela era, mas com um passado sofrido. Ela também perdeu o irmão, como eu...

Em um ato de conforto, peguei sua mão. Ela olhou para mim com olhos surpresos, um pequeno sorriso boquiaberto.

— Você é muito fofa. — Sorri também.

— O que você disse? — disse ela, mas aos poucos suas bochechas foram ficando mais vermelhas e seus olhos mais arregalados, como se processasse o que disse. Ela então riu, jogou o rosto para os lados e pareceu irradiar uma tímida felicidade por onde quer que passasse. — Obrigada...

— Aliás, quem é aquele? — Apontei para uma estátua que se destacava perto do caminho de pedra em que estávamos. Com uma praça só para ela, a escultura exibia um homem que segurava uma espada com duas mãos que estava cravada no chão.

— Ah, aquele é Marcus, o herói.

— Sério?!

— Sim!

Admirei-o de longe. Foi esse homem que sozinho combateu o mal e possibilitou que as terras devastadas de ontem se tornassem um lugar habitável e relativamente seguro.

Como deve ser a vida de alguém que perdeu todos os companheiros, tal como ele sofreu?

Companheiros...

Olhei para a Guinevere. Ela era quieta, na dela. Não fazia avanços, provocações e brincadeiras igual à Violette, mas a sua leveza me fazia sentir seguro. Diferente da Violette, não sentia nela segredos e complexidades que tornavam difícil conhecer e confiar nela. Ela era ela mesma, de forma genuína e autêntica.

Acariciei a mão dela com o dedão. Ela olhou para mim, antes de fazer o mesmo.

Não falamos mais nada. Mas precisávamos? Não haveria palavras capazes de me expressar mais do que aquele silêncio que tudo dizia sem dizer. Em algum momento, nossos dedos se conectaram, aproximando ainda mais o aperto de mãos.

“...” Meus olhos fitavam-na com sentimentos mistos. Ao mesmo tempo que meu coração se alegrava e ficava quente, sentia um pouco de ansiedade ao perceber que há outras garotas que valem a pena investir além da Violette.

Quando nos aproximamos de uma instalação, entramos pela catraca. Como estávamos sozinhos, a Guinevere passou duas vezes seu cartão estudantil para que eu entrasse, já que não conseguia fazer o orbe ficar verde por nada, tal como no meu primeiro dia aqui. Só agora que me lembrei que nunca fui até a senhora Hayek para recadastrar minha mana...

Ao invés de me questionar ou mesmo estranhar sobre isso, porém, ela apoiou as mãos no meu ombro e deu um beijo na minha bochecha.

— Obrigada pela companhia, Flamel — sussurrou ela no meu ouvido. — Tenho que ir. — Ela se virou, me deu um sinal de despedida com a mão, e saiu correndo pelo corredor, evidentemente saltitante.

Sorri mais e, perdido, segui pela direção em que ela foi.

A Guinevere...

Hehe.

Ela é incrível.

 

 

Passando pelos corredores, saí em uma arquibancada, em que todos os estudantes da minha sala estavam sentados na primeira fileira, de frente a uma plataforma branca. A professora Hayek estava em pé no centro dela, junto de um homem careca de barba cinza e feições carrancudas. Esse era o professor Dung.

— Pois então — falava Hayek. — Para dar início à nossa aula conjunta, conduziremos o primeiro treino de batalha de vocês envolvendo tanto feitiçaria quanto luta corporal. Seria interessante começarmos com dois alunos bons que pudessem nos demonstrar bem na prática como lutar... Hm... — Os olhos dela percorreram os alunos, até apontar para Guinevere, que já estava lá sentada.

— Você — continuou Hayek. Guinevere suspirou, era notável o peso de ser o “escravo pessoal” da professora. Ela andou até a borda da arquibancada.  — E quem irá duelar com ela será...

— Posso? — Levantou a mão um jovem de cabelos verdes longos, presos em um rabo de cavalo. Ele era alto, o corpo bem-definido. Seus olhos eram igualmente verdes como esmeralda.

De longe, vi que Cyle já ia se propor, mas abaixou o braço assim que aquele jovem o fez, como se o respeitasse e não estivesse disposto a enfrentá-lo. Interessante...

— Claro — falou Dung. — Você é dos bons. Venha, Hikaru.

A Guinevere e o tal do Hikaru pularam da arquibancada e aterrissaram com leveza, embora a altura não fosse pequena.

Ao lado da plataforma, havia mesas repletas de armas de toda sorte. Cada um foi até uma e escolheu seus armamentos. Ele pegou uma espada leve e curva, semelhante a uma katana, enquanto a Guinevere optou por um cajado de madeira quase do tamanho dela.

Com firmeza, se dirigiram ao centro da plataforma. A postura de ambos era elegante e refinada, como se pouco lhes importasse ser o centro de toda atenção, e nem temiam o iminente confronto que teriam.

Ainda assim, Guinevere fazia isso de forma natural e humilde, sem parecer se regozijar com toda a atenção e destaque. O jovem era o mesmo, apesar de ser mais sério e quieto.

Dung pulou da plataforma e aterrissou na primeira fileira da arquibancada, com uma força que seria inimaginável na Terra. Hayek, por outro lado, estalou os dedos e criou um feitiço no ar que produziu uma corrente de ar tão forte que a jogou até ao lado de Dung.

Como que eles...

— Preparam-se — disse Hayek, com uma voz que magicamente repercutiu por todo local.

De repente, tudo ficou silencioso. Todos olhavam com expectativa para os dois jovens que se encaravam em lados opostos da extensa plataforma.

Guinevere empunhou o cajado e o levantou ao ar, preparada para lançar feitiços que dominassem o adversário. Hikaru encolheu-se e mirou a ponta da espada em direção à garota, com as pernas dobradas de tal modo que conseguiria dar uma poderosa investida a qualquer momento.

O rosto simpático e leve da Guinevere foi substituído por uma expressão séria, resoluta e confiante, enquanto Hikaru reinava no silêncio e na inexpressividade.

— Comecem — falou Dung.

A tensão era tão palpável no ar que sufocava meu peito. Diante dos meus olhos, o duelo começou.

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