O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 22: Você é linda quando está sorrindo

Minhas pupilas saltavam entre a espada e a Violette. Empunhá-la tremendo já era um grande problema, sem considerar que o alcance da lâmina não era o suficiente para manter a garota longe... Larguei a espada na mesa.

“O que eu escolho?”

— Ele está com tanto medo que não consegue nem se mexer! — gritou Cyle e deu uma risada alta que reverberou pela plateia. Outras pessoas riram junto. Esse filho da...

Suspirei e voltei a observar a Violette, que empunhava uma adaga em cada mão. Ela é rápida e ágil. Lembro-me de como, no quarto dela, a garota me dominou com a faca no meu pescoço com tanta destreza. Se eu usar uma espada, ela desviará do meu ataque e quebrará toda nossa distância de uma só vez...

Meus olhos brilharam ao encontrar uma extensa lança. Com um cabo de três metros, ela era firme e com uma lâmina na ponta que não perdoaria mesmo se fosse usada para cortar em vez de perfurar. Meu sorriso se abriu, mas logo morreu ao segurá-la e sentir seu peso.

“Merda, que isso?” Tentei cortar o ar uma vez para testá-la e notei o quão difícil era seu porte. O centro de gravidade da arma era mais próximo da lâmina do que da outra extremidade, de forma que não poderia segurar muito na ponta. Isso eliminava mais que um metro do alcance dela. 

Enquanto a testava, não ouvi nenhuma voz da plateia, mas sabia que ficar manuseando uma arma assim antes da luta me transformaria em um alvo de chacota. Eu odeio o quão despreparado estou...

Ah, vai ser isso mesmo. A lança parece a opção mais confiável e segura. Vou-

Não sacrifique o longo-prazo por uma vantagem no curto-prazo, senão nunca construirá algo útil, visto que cada experiência de hoje é um tijolo do castelo de amanhã. Use uma arma que queira continuar usando no futuro, asseverou minha mente. Ela e suas exigências... Mas estava certa, no fim.

Como o filho pródigo que à casa retorna, voltei à mesa. Ouvi algumas risadas da arquibancada. Isso já não era uma luta, mas um show de comédia para o público. Vou mostrar para eles quem é o palhaço aqui...

Com o sangue fervendo, avaliei cada arma disponível. Alabarda, cajado, machado de uma mão, machado grande de lâmina dupla, espada, katana, livro mágico, sabre...

Foi quando vi uma espada curva. A lâmina era grossa e firme, a curvatura média e consistente. Parecia excelente para cortes, e dava para dar estocadas. Porém, meu interesse por ela era mais profundo que vantagens técnicas...

Segurei-a e avaliei o peso. É estranhamente robusto empunhar armas na vida real, exigem força e explosividade a cada golpe. Mas algo nela me convidava. Sentia como se fosse a escolha correta. A arma me pertencia.

Fiz minha escolha. Antes de subir na arena em que Violette me esperava com um sorrisinho, fechei os olhos e tentei relaxar, ignorando meu peito pulsando a cada batida nervosa do coração. Foquei em respirar fundo. Meus instintos gritavam para ir lutar logo, para deixar de passar vergonha.

“Tenho que ir para a arena. O Cyle vai fazer mais piadas. Até o Dolgan deve estar com pena de mim”, passavam pela minha cabeça tais pensamentos. A despeito disso, deixei-me relaxar. Se eu for lutar assim, eu-

— Ficou com medo? — disse Violette, interrompendo meus pensamentos.

Poderia qualquer pessoa falar isso. Contudo, ouvir isso da Violette fez meu coração incendiar-se, já que ela me colocava em todas as situações horríveis, e ainda ficava me provocando. Fitei os olhos dela; ela retrucou minha raiva com um sorriso ainda maior.

Subi na arena, ar faltando aos meus pulmões, ansioso. Mas pouco importava. Não vou recuar agora, ela me desafiou e não vou recuar como um covarde.

Ainda assim, enquanto a observava, esqueci até mesmo como empunhar a espada. Se ela desse uma investida frontal, eu defenderia como? Com um corte? Uma estocada? O que...

Preparados? — falou a professora Hayek.  

No breve instante que se seguiu, meus olhos conectaram-se aos de Violette. Aquela garota confiante, com lábios travessos, era agora meu alvo. A mesma Violette que me curou, que quase me beijou na cama, que falava tantas coisas só com o olhar...

Comecem.

...Era quem eu deveria agora enfrentar sem hesitar.

Assim que Hayek pronunciou o início do confronto, Violette jogou a adaga ao alto. Enquanto rodopiava, a garota recolheu os joelhos, aproximando-se do chão; no momento em que a adaga estava de volta em sua frente, disparou-se em uma investida veloz e a agarrou com destreza.

Segurei a espada na minha frente com mãos trêmulas. Não sabia como contra-atacar; para todas possibilidades que imaginava, a Violette desviaria, quebraria a distância e cravaria a adaga em meu pescoço. Ela corria de forma tão aberta, porém não havia aberturas possíveis. Qualquer ataque levaria ao meu fim.

Quando ela chegou no meu alcance, arrependi-me por perder tanto tempo pensando. Fiz um corte horizontal, desesperado, e, já esperando que ela desviaria, preparei meus quadris para um novo ataque na direção que ela fosse. Para a minha surpresa, porém...

Tin.

Ela parou o ataque apenas com o fio da adaga. A lâmina curva fez com que a espada deslizasse em contato com o punhal. Por um instante, fiquei chocado e-

Gire a espada e dê uma estocada.

Fiz como pedido; notei que, após girá-la, a curvatura da lâmina contornou o fio da adaga e se lançou direto à Violette. Ela percebeu isso e rolou pelo chão, desviando-se. Não perdi a oportunidade e disparei outro ataque em suas costas. Ela prontamente se empurrou para trás com as mãos, executando acrobacias até parar em pé a alguns metros.

— Até que você não é tão mal — disse ela, lambendo os lábios com aquele sorriso pernicioso.

Enquanto estava encharcado de suor tentando sobreviver, ela estava se divertindo com tudo. Sentia-me como um pequeno inseto que não era mais que brinquedo nas mãos delas.

— Nem você — retruquei.

Ela arregalou os olhos, antes de rir.

— Se você diz.

Observava-a, quando comecei a sentir um leve vento abraçando minhas roupas. Pisquei por um instante e, quando abri os olhos, ela já estava na minha frente, a lâmina indo diretamente em meu pescoço.

“Que merd-”

Pulei para trás. Ela prontamente investiu à frente, aproximando a segunda adaga ao meu abdômen em alta velocidade. Não tive tempo. Usei a cimitarra, cuja lâmina estava ao chão, para fazer um corte vertical que a expulsasse, mas ela rodou para o lado, desviando do meu ataque como se fosse um passo de dança, e se preparou para um novo corte.

Não podia eu deixá-la se aproximar mais, senão seria meu fim. Continuei atacando freneticamente. Ela desviava de cada golpe, sempre a lâmina seguindo a poucos centímetros do corpo dela.

Fiquei nervoso e tentei atacá-la ainda mais. Porém, foi em vão; tudo que eu fazia era desperdiçar muita energia em cada ataque.

— Não vai mudar de tática? — falou ela ao se esquivar de um corte horizontal, dobrando a coluna para trás; aproveitando que estava próxima do chão, se jogou para mim por baixo e chutou minhas pernas, fazendo-me cair. Bati minhas as costas contra o chão; o impulso fez minha cabeça seguir e se chocar contra o piso. Larguei a espada por reflexo.

Argh!

Hehe. — Ela colocou os pés ao lado dos meus quadris e se abaixou de joelhos. Apoiou seu peso com uma mão no chão perto do meu rosto e ergueu uma adaga ao alto. Sua face, perto da minha, me encarava com olhos brilhando naquela cor violeta misteriosa. Sorrindo, aproximou os lábios do meu ouvido e sussurrou:

É só isso que você tem, Flamel?

Resisti, tentando empurrá-la para longe, mas era incapaz de movê-la; sua força era maior que a minha. A única coisa que podia fazer era respirar, enquanto observava aquela adaga que me apunhalaria a qualquer momento.

— Violette? O que você-

A mão dela de repente desceu com força em direção ao meu pescoço. Fechei os olhos e senti a lateral dele ferver e arder intensamente. Abri os olhos lacrimejantes e vi a adaga enfiada no chão ao meu lado, um filete de sangue do meu pescoço escorrendo sobre a lâmina.

Encarei Violette mais uma vez, mas o que via não era a garota simpática e amável. Era antes uma assassina, alguém que facilmente daria um fim à minha existência. Era eu um mero brinquedo, não diferente dos nobres que são seduzidos por uma mulher, apenas para terminarem na própria cama com uma adaga atravessada no coração.

Você está com medo, Flamel? — Ela tocou minha bochecha gentilmente e fez nela um pequeno carinho. Parecia se deliciar com cada agonia minha.

— Sua psicopata.

Hehe. Você é fofo, sabia? — Levantou-se e saiu caminhando para o lado oposto da arena, balançando os quadris com sensualidade. — Levante-se — falou mais alto. — A luta ainda não terminou. Quero te humilhar mais~

— Sua vadia...

Levantei-me trêmulo e peguei a espada, o sangue quente escorrendo pela gola da camisa. O corte felizmente não foi profundo... Ela vai ficar se divertindo comigo assim, na frente de todo mundo? Olhei para a plateia, e todos estavam sorrindo e comentando sobre o espetáculo que a Violette proporcionara agora.

Não obstante, vi duas pessoas que não participavam da euforia do público. O primeiro era Cyle, que me encarava com um rosto estupefato e recheado de veneno no olhar, pronto para me estrangular assim que pudesse. E o outro era... Guinevere, deitada no colo de Hayek, cujo rosto era uma mistura de vergonha e decepção. Parecia afetada por tudo...

Concentre-se na luta, disse minha mente.

Quando prestei atenção na Violette, ela já estava na minha frente novamente. Em vez de tentar me cortar com a adaga, empunhava-a como se fosse me apunhalar, deixando sua guarda repleta de falhas e aberturas. Sua outra faca permanecia cravada no chão onde estávamos, como se lhe fosse indiferente para me derrotar.

Aproveitando a chance, coloquei força desde a base dos pés e impulsionei meus quadris, desferindo uma estocada em direção a ela. A garota desviou para direita, e rapidamente segui com outro ataque.

— Você está melhorando. — Ela riu e pulou alto.

Péssima escolha, no ar não pode se esquivar... Prontamente investi contra ela com um corte oblíquo com toda minha força. Ela conseguiu defender com a adaga, mas o impacto a fez ser empurrada para alguns metros longe. Eu sempre tive essa força?...

— Nada mau. Nada mau. Você conseguiu corrigir a sua abertura à direita. Mas ainda tem várias outras.

Pulou com tudo para cima de mim outra vez. Igual antes, disferi uma estocada em sua direção, mas dessa vez ela se esquivou para baixo. Como estava aguardando que ela fosse para a direita ou esquerda, ou até pulasse, dei a estocada no alto e no centro, o que abriu espaço para que se esgueirasse por lá.

“Merda.”

Não tive escolha a não ser pular para o lado. Ainda assim, senti a adaga fatiando minha canela em cheio. Consegui aterrissar bem, mas a dor envolvia minha perna como se estivesse em chamas.

— Você não pode pegar mais leve?!

— Não mesmo. Fla-Mel. Hehe.

Sem me dar descanso, deu outra investida. Em vez da estocada, apostei em um corte oblíquo, que só abria espaço para desviar ao lado oposto. Prevendo que para lá ela fosse, já preparei um segundo ataque, mas-

— Ops. Essa você calculou mal.

Ela saltou com alta velocidade para cima de mim, em um tempo curto demais para reposicionar a espada. A adaga dela estava a poucos instantes de penetrar em meu crânio. Merda!

“Disparo Elétrico!”

Invoquei a runa na frente do meu rosto e lancei o raio a tempo. Ela, percebendo o feitiço, usou meu braço esticado como degrau e pulou para longe, desviando-se do raio.

Ao aterrissar, Violette jogou os cabelos para trás em uma pose que, com os braços levantados, esbanjava suas curvas. Seu sorrisinho deixava claro que sabia bem o que fazia.

Ela me dava raiva. Muita raiva. Odeio como ela me trata, sempre com joguinhos e tentando se exibir.

Pela primeira vez na batalha, tomei a iniciativa e investi contra ela com um corte direto. Seus olhos ficaram surpresos, malgrado tenha desviado perfeitamente da lâmina. Não parei só com isso. Ataquei, ataquei e ataquei; suor consumia meu corpo enquanto tentava acertá-la, mas era impossível quebrar seus desvios perfeitos. Até mesmo rodopiava e ria de levinho com alguns golpes.

— Vamos lá, Flamelzinho. Tente mais forte.

— Cala a boca.

Coloquei mais força em cada ataque, mas sentia meu corpo se tornando progressivamente pesado e fatigado. Não tenho preparo suficiente...

— Hah... Hah... Hah...

Mesmo assim, continuava me esforçando. Até que-

— Acho que você está folgado demais.

Violette começou a aparar cada investida com a adaga em vez de desviar. Ela impulsionava e rotacionava o corpo de tal maneira que mais do que compensava cada força bruta com que eu desferia os golpes.

Isso não é o bastante... Não é...

Não vou ganhar aqui, está fora do meu controle. Entretanto, não vou perder desse modo...

“Espinho de gelo.”

Invoquei o feitiço debaixo de onde ela provavelmente desviaria após meu ataque atual. Surpreendentemente, ela fez um movimento não-natural para trás, esquivando-se de ambas iniciativas e aumentando a distância.

Merda. Não havia como ganhar a batalha, e tudo que podia fazer é tentar executar diversos feitiços de nível básico que aprendi ontem. Ainda assim, ela estava sempre um passo à frente, prevendo tudo que fazia.

— Hm. Inteligente. Mas falta muito

Enquanto ela dizia isso, eu já estava produzindo mais outro espinho de gelo; Violette percebeu e saltou, apenas para dar de cara com outro feitiço no ar:

“Corte de vento.”

O ar se dobrou e criou uma onda de alta pressão que se chocou contra a adaga dela. Foi empurrada para trás, mas a acompanhei e disparei outro ataque com a cimitarra, fazendo-a ser jogada ainda mais adiante no ar. Prevendo onde ela aterrissaria, fiz o feitiço:

“Chão Escorregadio.”

Violette apoiou os pés bem no local para suportar o peso da queda.

— Muito bem. Você-

Os pés deslizaram e as pernas foram jogadas à frente.

— Ah!

Colocou as mãos no chão e conseguiu se empurrar para cima, rodopiando no ar. Mas não deixei que abrisse espaço e a ataquei outra vez com um corte de baixo para cima usando toda minha força restante, junto do feitiço:

“Fortificação Corporal.”

Senti meu corpo se aquecendo com uma energia que precisava ser canalizada naquele único ataque, com tamanha explosividade e potência. Desse ataque ela não conseguiria desviar.

Encarei-a repleto de expectativa, vendo a espada se aproximando da adaga dela. No entanto, os lábios dela se abriram. Antes mesmo de o choque acontecer, meu coração se apertou. Sabia que fracassei.

A cimitarra continuou e atravessou o corpo da Violette, mas não senti cortando carne alguma. A imagem dela no ar foi partida ao meio e começou a se esvair. Onde ela-

Você realmente não cansa, não é? — sussurrou ela em minha orelha. Tomei um susto e pulei para frente instintivamente, tentando me distanciar dela, mas um corte se abriu no meu pulso, fazendo-me largar a espada.

Ofegante e atordoado, repleto de suor, encarei-a, minhas pernas quase cedendo meu peso. O rosto dela estava... sombrio. Não se podia ver o sorriso típico, apenas uma expressão severa e fria. Todo calor e carinho da Violette deram lugar a uma feição que declarava meu fim com desprezo. Na escuridão de seu olhar, a luz violeta brilhou outra vez. Isso...

Como se retornasse no tempo, me vi diante daquele monstro. A mesma capacidade de se teletransportar, de brincar comigo, de ir pouco a pouco me torturando e me cortando, enquanto clamava por minha vida.

— N-não pode ser...

O sorriso dela se abriu somente então. Como se deleitasse com o medo que irrompia do meu coração, lambeu os lábios.

Esse vai ser o seu fim — sussurrou, aproximando-se passo por passo, sem pressa. Seus quadris não mais balançavam. Cada batida de sua bota no chão era firme e fria.

A Violette... A Violette consegue ser assustadora assim?... Isso não é só fingimento?...

A cada passo dela, mais eu caminhava para trás, até chegar ao final da plataforma. Só conseguiria sair dela se desistisse do confronto. Encarei a plateia e senti a ansiedade e expectativa com que observavam o confronto. Se eu morresse nesse exato momento, não duvidaria que bateriam palmas e engrandeceriam a garota.

— V-Violette?...

Não houve resposta. Continuou até ficar face a face comigo. Vi de perto seus olhos sem-vida, frios, brilhando com a mesma intensidade do monstro, embora em cores diferentes. Segurou meu pescoço e apertou-o, bloqueando minha traqueia e impedindo que qualquer ar entrasse nos pulmões.

— V-vio... lette...

— Desista — proclamou ela em tom severo.

— M-mas...

Meus olhos se encheram de lágrimas. Demorei tanto tempo para me reerguer, para começar a treinar... Não quero desistir agora, especialmente na frente de todos...

A falta de ar começava a fazer meu corpo arder e doer. Segurei seu pulso em angústia, tentando desprendê-lo do meu pescoço. Preciso respirar. Preciso. Mas não consigo.

— Desista.

— Viol... por fav...

— Desista. Agora. — Apertou ainda mais forte. Um dos ossos da vertebra foi estalado em um som horrível, e o rangido nos ossos irradiou até meu crânio, arrepiando minha nuca e cabelos.

Vou morrer, vou morrer.

— E-eu... de...

Queria muito proclamar a desistência. Essa não era a Violette. Preciso fugir daqui. Mas... Mas...

Lágrimas escorreram dos meus olhos e molharam a mão dela, que em nada vacilou mesmo presenciando minha dor e desespero. Não posso me deixar perder assim. Não posso ser humilhado de tal forma...

Foi quando vi nos olhos dela uma pequena lágrima se formando. Mordeu os lábios e, por um instante, relaxou a mão no meu pescoço, permitindo-me respirar antes de apertá-lo novamente. A lágrima que se formou não cessou e logo deslizou pela bochecha.

Desiste logo, por favor... — cochichou ela. Sua voz era ainda mais suplicante que a minha.

Não a entendia. Se queria ganhar de mim, não precisava de ter me chamado para o duelo... Por que agia assim? Como sempre, aquela face escondia tanta coisa de mim, e eu jamais seria capaz de saber o que exatamente se passava dentro daquela mente.

D-desculpa... — cochichei de volta. Sentia-me um monstro por isso, mas não poderia parar aqui. Todos estão me olhando. Quero ser visto como alguém minimamente bom. Estou cansado de ser ignorado por todos. E estou cansado de fugir... 

A mão dela apertou ainda mais meu pescoço. Nesse ponto era capaz de a minha coluna se romper antes de morrer asfixiado, fora que o peso do meu corpo sobrecarregava o pescoço que o sustentava.

Preciso parar com isso... Preciso...

“Disparo elétrico”, invoquei o feitiço atrás dela. Ela posicionou a mão logo na frente da runa e bloqueou o feitiço. Meu ar já estava ao fim, e meu corpo se contorcia mais no desespero da asfixia.

“Disparo Elétrico. Disparo Elétrico. Disparo Elétrico.” Tentei um após o outro, e continuamente ela se defendia. Minha visão começava a escurecer, e já não tinha forças para manter meus braços ao alto segurando a mão dela. Caíram sem vida, mas ainda não posso...

“Disparo elétrico; disparo elétrico”, invoquei os dois ao mesmo tempo, em ambos os lados do corpo dela. Ela bloqueou um, mas o outro a atingiu em cheio e a fez se contorcer. Naquele momento, a pegada dela ficou mais frouxa e consegui me soltar. Caí no chão e rastejei para longe, respirando freneticamente.

— O quê? — Ela me encarou com descrença. — Como fez isso?

Ela veio se aproximar de mim de novo, embora hesitação fosse evidente em cada passo. Invoquei um espinho de gelo embaixo dela, mas Violette pisou nele e o esmagou como se fosse nada. Se ela for fazer isso de novo...

Nunca tentei fazer dois feitiços diferentes ao mesmo tempo, mas é a única forma de pegá-la desprevenida... Se ela vai pisar novamente no espinho de gelo que surgir, então...

— Espinho de gelo! — gritei com ímpeto, enquanto secretamente imbuí a área dele com “Descarga Elétrica”.

A manipulação das duas runas foi incrivelmente estressante ao meu cérebro, pois necessitava de me concentrar em duas runas muito diferentes simultaneamente: enquanto a de gelo precisava de uma distribuição regular de mana por causa do equilíbrio do elemento, a de choque requeria criar dois polos eletricamente diferentes e descarregar tudo de uma vez. Um instante de desconcentração e ambos falhariam.

Ainda assim, embora uma dor de cabeça assolasse meu cérebro, consegui executar os dois.

O espinho surgiu abaixo dela, e, tal como fez com o anterior, ela pisou em cheio nele, apenas para ser eletrocutada e ter seu corpo convulsionando por alguns instantes. Ela caiu de joelhos.

Eu... Eu consegui. Um misto de orgulho invadiu meu peito, mas esse sentimento foi ofuscado quando vi o rosto dela. Nos entreolhamos, e presenciei a face de uma garota perdida e conflituosa. Parecia ter considerado a possibilidade de ela mesma desistir para me poupar, mas enxugou a bochecha molhada e se levantou. O rosto voltou a escancarar seriedade e frieza, escondendo suas emoções ao público.

— Como você consegue usar dois feitiços diferentes ao mesmo tempo?

Engoli em seco. Um cérebro normal não deveria ser capaz disso. E acabei de revelar isso para...

— Você sabia disso, Hayek? — Ouvi Dung comentando.

— Não... Nunca ouvi falar disso. E pensar que ele...

Não pude ouvir mais a plateia, pois Violette se aproximara mais e golpeou o ar, relativamente próxima de mim. Surpreendi-me ao ver que o vento propagou o corte dela com uma rajada que se chocou contra meu torso. Rasgou meu tórax desde o ombro até o abdômen. Meu sangue se espalhou por toda a roupa e gritei de dor. Aquela porra era como se uma cirurgia fosse feita em mim sem anestesia.

—Violette! — Chorei mais. Ela realmente não vai parar?!

O olhar dela, porém, continuava sombrio, como se pouco se importasse com meu sofrimento. Mas eu sabia que não era assim. O rosto ainda estava molhado com a lágrima que escorrera.

— Não vai desistir?

Desistir... Desistir...

Fazer feitiços simultâneos exigia uma mana absurda, e meus músculos estavam fracos e sem forças. Porém... Porém...

Levantei-me com bastante dificuldade e a encarei. Não fugi do olhar frio dela; encarei-a de volta, resoluto. As írises dela brilharam, e também não fugi disso. Não vou desistir. Meu lugar é aqui. Cansei de fugir. Já nem sabia mais se ela realmente não seria capaz de me machucar, a julgar pelo meu torso ensanguentado, mas não recuaria.

— Se quiser me matar, vá em frente. Mas não vou desistir.

Agachei-me para pegar a espada caída, mas minha panturrilha foi invadida por uma câimbra terrível e desabei no chão, fraco e incapaz.

Ah!

Para a minha surpresa, não ouvi nenhuma risada ou conversa na plateia. Mas foda-se se tivesse. Estou cansado dessa merda. Coloquei as mãos no chão e me levantei, demorando quase um minuto inteiro de puro sofrimento. Não vou ser humilhado. Não vou mais ser chamado de “Flamel, o inútil”. Não vou.

Quando me pus de pé, notei que Violette me encarava com os olhos realmente molhados e o rosto avermelhado, incapaz de se segurar mais. Aquele monstro sedento por meu medo que inicialmente enxerguei não podia ser visto em lugar algum, apenas uma garota triste e indecisa.

— Por que você só não desiste? Não vai perder nada com a derrota... — Era evidente em suas palavras a pena que sentia por mim.

Era irracional eu não querer desistir, de fato. Mas... Mas...

Dos olhos brilhantes dela lágrimas escorreram. Notei que, embora tivesse cortado meu corpo, nenhum ferimento era profundo, e nenhuma artéria foi atingida. O tempo todo ela esteve tomando cuidado comigo, embora parecesse que não.

Merda, até a forma como ela tem lutado comigo. Quando ela disse que melhorei a minha abertura à direita e ela veio por baixo, estava apenas treinando minhas fraquezas e aberturas. Se ela realmente quisesse, teria me matado há muito tempo.

Aqueles olhos assustados dela, que me encaravam com torrentes de lágrimas envergonhadas, não poderiam ser de uma assassina. Não. Conheço bem esses olhos. Os mesmos que já vi em mim no espelho. Lembro-me que, quando lhe disse no quarto que queria ajudar as pessoas, ela abruptamente decidiu sair do quarto. Alguma coisa a incomoda, a assusta, a persegue...

Não quero isso. Aqueles olhos tristes mexem com meu coração.

Andei até ela, a espada sendo arrastada pelo chão. A cada passo eu quase caía, mas dava tudo de mim para me segurar. Em certo ponto, tive que usar “Fortificação Corporal”, mesmo quase sem mana, apenas para chegar até ela.

Violette não reagiu. Não empunhou a adaga. Permitiu que eu fosse até a encontrar face a face. Vi de perto aqueles olhos luminosos. Vi medo. Dúvida. Arrependimento. Desespero. Aquelas lágrimas eram a expressão de sentimentos que tentava reprimir com muito custo.

Vê-la daquele jeito me trazia tanta dor quanto os cortes...

— Viol...

Larguei a espada e levei minha mão ensanguentada ao seu rosto. Apalpei sua bochecha e a acariciei com o dedão. Tremendo, me inclinei e beijei sua testa.

— Você é linda quando está sorrindo... Não fique assim.

Ela me encarou em silêncio, com um rosto avermelhado e mais lágrimas caindo. A mão com a adaga tremia. Vê-la assim realmente machuca...

No fim, foi com ela que descobri que não era tão culpado, e que meu irmão me perdoaria. Foi ela que esteve lá para me abraçar depois das minhas crises no banheiro. É ela, com suas bênçãos, mistérios e problemas que me fazia querer saber mais sobre qual seria sua face verdadeira.

Era ela...

Eu não tinha mais forças; caí no chão ao lado dos pés dela. Meu corpo foi sugado ao máximo na batalha.

Mesmo assim... Esse ato de coragem, o fato de eu ter continuado tentando mesmo com medo, chorando e sabendo que poderia ser meu fim... Essa coragem eu nunca tive em minha vida.

Essa vida... Essa vida em que sou capaz de dar tudo de mim, de lutar sem temer a morte... Sempre quis ser assim. Sempre quis ser capaz de fazer aquilo que quero, mesmo que meu corpo gritasse para não o fazer.

Para ter tudo isso, mais do que mudar, tive apenas de deixar quem eu era ir. Deixar o medo de lado e seguir em frente. Apenas tive que me perdoar e seguir em frente. Sempre era tão fácil, e nunca vi isso...

Será que meu irmão finalmente estaria orgulhoso de mim?

Talvez... Ou talvez ele me odiaria por, no fim, não ser capaz de não mostrar empatia por quem me tratou tão mal nesse duelo. Talvez eu não seja tão valente assim, afinal, e tenho um coração maior que meu orgulho.

Só...

Estou feliz. 

Sou melhor.

Caído no chão, já não conseguia ouvir mais nada. Tudo era uma escuridão vazia. Daquele jeito, perdi meus sentidos e desmaiei no meio da arena.

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