Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume II – Arco IV

Capítulo 50: A Maldição

Como cadeira de ouro e vice-presidente do ministério, eu tinha acesso a uma vasta gama de informações confidenciais do arquivo. Isso me permitiu consultar projetos escritos e assinados pelo meu avô, quando ele o presidia.

Vários mencionavam uma nomenclatura desconhecida: Chrylia-310.

Pesquisando mais a fundo, descobri outras versões do mesmo componente: Chrylia-290, Chrylia-270... até que cheguei à resposta. Tratava-se de uma droga chamada Chrysós Lapulia, mantida em segredo pelo Estado.

Aprendi sobre ela em um dos livros que meu avô guardava no depósito do estúdio. Ela tornava imunes ao Declínio as pessoas que a consumissem. No entanto, a planta que a originava havia sido extinta há séculos.

Mas o documento que eu tinha em mãos dizia algo diferente: sua produção fora monopolizada por membros de uma aristocracia de fora das muralhas, que vendia sementes estéreis em estoques limitados.

Sendo assim, os números 310, 290 e 270 representavam os anos em que essas sementes foram compradas — projetadas para durarem cerca de vinte anos.

Eu estava embasbacada. Ao longo de seis décadas, meu avô projetou mecanismos de processamento de materiais que tornassem os efeitos da droga acessíveis à população, mas, por ser arriscado demais, nenhum foi adiante.

Em vista disso, a substância passou a ser administrada a uma pequena parcela privilegiada da população. Ele seria destinado ao campeão e escudeiros destinados a lutar por Messias na lendária Corte dos Heróis, no ano 333 pós-Cisão.

O problema é que não tínhamos um campeão. Só um homem faria um campeão ideal, e eu, filha única, fui designada como mulher ao nascer. Ter mais de uma criança era contraindicado e malvisto pelas leis da nossa sociedade.

Ainda assim, a droga continuou a ser comprada pelo antigo rei em troca de quantias exorbitantes de dinheiro, e meu pai fez o mesmo após ascender ao trono.

... Se a planta havia sido dada como extinta, como raios conseguiram “reproduzi-la”? Isso não fazia sentido, a menos que a origem dos estoques datasse de séculos atrás. Além do mais, com que intuito venderiam algo assim?

Quando cheguei à última página do documento, dei um sobressalto e quase deixei os papéis caírem.

Listado entre os nomes dos indivíduos em que o Chrysós Lapulia fora administrado, estava o meu. Uso oral, em doses mensais. O mínimo necessário para garantir imunidade à maldição sem causar efeitos colaterais intensos.

Ele havia sido misturado à minha comida sem que eu percebesse — o que significava que mais gente além da família real e das cabeças do Ministério das Ciências sabia disso. E nunca me disseram nada.

No dia seguinte, solicitei uma audiência com meu pai.

— Eu imaginei que você descobriria — ele disse, com um semblante frio, impassível. — E então? Era só isso?
— Huh?
— Era só isso?
— P-Por que escondeu isso de mim, pai? Vocês... estiveram sempre brincando com as vidas das pessoas...!

Deu um suspiro.

— Circe, estou certo de que a lista que você teve acesso continha outros nomes.
— O seu incluso.
— Precisamente. Esta é uma etapa do Projeto haBa. A estratégia de sobrevivência elaborada pelas autoridades magistrais de Apollodorus. O nosso futuro.

Projeto haBa? Estratégia de... sobrevivência?

— Há uma data estipulada para o fim da espécie humana — continuou —, isto é, o dia da Correnteza Eterna. É o dia da ira, a partir do qual nenhum ser humano deverá viver como carne. Mas o Chrysós Lapulia não é uma droga comum. Ele tem o poder de dar controle sobre a morte. É possível que o uso dele nos salve do fim iminente. 
— N-Não pode ser. Pai, você-...
— O plano foi iniciado por meu antecessor. Os indivíduos selecionados são aqueles que acreditamos possuir o potencial para atuar na sociedade que sucederá a atual. Médicos, educadores, cientistas, produtores, grandes comerciantes, mulheres férteis, entre outros. 

... Aquilo era absurdo. Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. 

— E por que eu? — indaguei. — Se fui inserida nisso desde antes de nascer, que tipo de potencial eu tinha? 
— Nenhum. Quando sua mãe engravidou, tivemos esperança de que você seria um homem. Odysseus de Apollodorus. O herói que traria a salvação a este mundo. Mas você nasceu mulher. A decisão de mantê-la na lista veio do seu avô. 
— O quê?!
— Se o Messias não for atingido, o mundo quebrará. O Projeto haBa é a única forma de garantir a sobrevivência da linhagem real e manter a estabilidade do poder. 
— E quanto ao restante das pessoas? Vai matá-las? É isso?! 
— Sacrifícios devem ser feitos em prol do futuro. Essa também era a vontade do seu avô. Se você não é capaz de compreender isso, então ainda não está preparada para sentar neste trono, ou usufruir do poder que concedi a você. Escute bem, Circe. Seu trabalho também deve continuar, no mundo que há de vir.

Aflita, fechei a cara e corri, deixando-o sozinho com seu trono mofado.

Não foi por esse tipo de futuro que eu e meu avô estivemos lutando e trabalhando todos esses anos. I-Isso... era o mesmo que desistir e jogar nossas responsabilidades no lixo. 

O vovô nunca concordaria com essa tal "estratégia de sobrevivência". Afinal, ele continuou dando duro por todos até tirarem tudo dele. Eu nunca acreditaria nisso...!

Ao mesmo tempo, eu estava diante de um beco sem saída. Eu não era um herói, logo não tinha agência sobre a salvação do mundo. O modo como tudo isso foi jogado em cima de mim... era como se eu fosse uma decepção.

Certo dia, os pássaros não cantaram.

Foi quando meu avô faleceu em decorrência da maldição. O forte havia sido colocado em quarentena por tempo indeterminado, junto dos que lá viviam, incluindo minha mãe. Em um mês, todos foram dados como pacientes terminais.

Com isso, me dei conta daquilo que mais temia. Sabe-se lá desde quando, meu pai havia dado a ordem para cessarem a administração do Chrylia-310 neles, ainda que seus nomes estivessem na lista, pois não eram mais “úteis”.

Isso os tornou suscetíveis ao pico de contágio.

Três bairros foram afetados. Semanas antes, o povo já alegava que a água retirada de alguns poços tinha gosto de metal. Aparentemente, houve uma falha no sistema de filtragem, que não recebia reformas úteis havia anos.

Cerrei os punhos, suprimindo a vontade de rir e dizer “bem feito, que isso sirva de lição por terem feito o que fizeram com a pessoa que consertava isso pra vocês”, mas não era justo culpar os inocentes que nada tinham a ver com meu rancor.

Se alguém deveria ser responsabilizado por isso, era meu pai. E eu, por ter ficado calada, mesmo sabendo o que eles pretendiam fazer. Eu não fui diferente deles. Me escondi atrás de suas mentiras, sem tomar uma atitude à altura.

— Circe. Você está aí...? — chamou minha mãe, do outro lado da porta da câmara de contenção.
— Mãe? Por que saiu do leito?!
— Circe, me escute... Nada disso é culpa sua. Não importa o que aconteça, não deixe isso te consumir. Não deixe... 

Ela se engasgou e vomitou.

Ouvi um líquido pesado cair no chão. Regurgitação de fleuma e sangue com excesso de componentes metálicos que o organismo não conseguia digerir. Era um dos sintomas terminais mais comuns.

— Mãe...!! Volte para o leito! Você precisa descansar. Essa sensação vai passar!

Eu estava mentindo. Na próxima vez que ela dormisse, provavelmente não acordaria mais. A falência dos órgãos era irreversível. Eu estava apenas esperando, fazendo companhia para ela como um gesto de despedida.

— ... Circe, vá até o forte.
— O forte?
— N-No quarto do seu avô... tem algo que ele escreveu para você, antes de morrer. Por favor...

De início, eu não acreditei que o que ela dizia fosse verdade. Desde o apedrejamento, o vovô mal conseguia segurar um lápis.

Na medicina, há precedentes de pacientes que apresentam melhoras repentinas em suas condições antes de seus organismos pararem de funcionar por completo. Por isso, após minha mãe deixar este mundo, fiz como ela pediu.

Aproveitei a comoção na cidade para invadir a quarentena e visitar o quarto onde costumava dormir quando os visitava. Lá, encontrei uma pequena caixa, na qual havia colado o presente que dei ao meu avô quando eu tinha oito sóis.

Era um desenho dos quatro pássaros: o corvo, o cisne, o pavão e o pelicano.

Eu a abri e encontrei uma carta. A caligrafia era quase ilegível, e eu podia notar a dificuldade com que havia sido escrita. Era como se... essa pessoa tivesse usado de todas as suas forças para terminá-la e deixá-la para mim.

“Para minha pequena Circe,

Dadas as circunstâncias, não tenho como dizer as palavras que você gostaria de ouvir. Tudo o que tenho é o temor pelo fim desta vida, que me devolveu a força para tentar lhe alcançar uma última vez.

Quando você nasceu, eu não quis que a responsabilidade do mundo fosse colocada em seus ombros. Conforme vi você crescer, percebi que sua paixão não era pelas artes da guerra, e sim pelo conhecimento.

Por isso, quis lhe conceder outro caminho. Um tão iluminado e brilhante quanto o ouro puro dos livros que líamos juntos.

Há mais tempo do que posso recordar, amei uma pessoa que, caso o destino permitisse, teria sido um de seus avós. Ele se foi pela mesma enfermidade que me levará em breve.

Por anos — décadas — busquei incessantemente uma forma de trazê-lo de volta à vida, entregando-me às artes proibidas da alquimia e envolvendo você em minhas irresponsabilidades.

Não se engane achando que não me orgulho do seu trabalho. Você soprou os ventos da mudança nesta cidade. Mas essa responsabilidade veio acompanhada de muitos riscos e acontecimentos infelizes, não foi?

Sempre que via seu rosto entristecido, eu pensava: teria o meu erro roubado sua juventude?

Se sim, perdoe este homem velho e infeliz. A partir de agora, pense com o seu coração. Não é tarde demais. Ainda há tempo de seguir outros rumos e encontrar a felicidade que este mundo tirou de você.

Permita-se amar, e ser amada. Ter pessoas em quem confia, e que também confiem em você. Você pode encontrar uma nova família, longe do passado triste que a prende. Por isso, não tome todo o peso para si.

Para minha querida e única neta, Circe, deixo o meu amor mais especial.”

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EMBLEMA XVII
Quatro orbes governam este trabalho de fogo.

"No trabalho que imita a natureza,
deves encontrar quatro orbes.
Dentro delas, atua um fogo leve.
A inferior se refere a Vulcano, a seguinte, Mercúrio.
Luna é a terceira. E durante a quarta — Apolo —,
pode-se ouvir a voz da natureza e do fogo.
Deixe que a correnteza conduza sua mão na arte."

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Me alistei ao exército e supri a ausência de um campeão. Eu não tinha o nome de um herói, tampouco experiência em combate. Meu pai foi amplamente contra minha decisão inconsequente, mas cedeu à vontade popular.

Desde aquela época, tudo o que fizemos foi discutir. As decisões dele mataram minha mãe, meu avô e as outras vítimas do pico de contágio. Eu o odiei. Odiei a ponto de abandonar minha cadeira de ouro e largá-lo de mão.

Os conhecimentos que adquiri não tinham o poder de nos curar, nem de nos salvar. As teses que elaborei em segredo do Estado, os estudos a respeito do Declínio, se mostraram infrutíferas por conta das limitações.

Ora, quem além de mim levaria isso a sério? No máximo, eu seria apedrejada e presa.

Então, criei uma separação entre mim e minha própria humanidade para subir a Torre dos Filósofos e alcançar Messias. Dessa forma, eu realizaria meu sonho à força e garantiria que a humanidade sobrevivesse à extinção.

A fase de treinamento foi árdua. Passei por uma série de provações e testes feitos para me fazer desistir e retornar ao meu posto como uma mulher. O herói era viril. O homem absoluto. Não existia uma versão feminina da palavra.

Qualquer mulher que desejasse ser um herói haveria de demonstrar o espírito de um Andros primordial. Ser uma grande líder e estrategista. Uma figura plena, magnífica e nobre, na qual os povos depositam suas esperanças.

Eu entendia bem o risco que corria, mas que outro caminho me restava? Ao contrário do que o vovô pensava, eu não tinha como viver uma vida comum, muito menos me sujeitar a algo tão repugnante quanto um conúbio.

Não nego que isso surgiu em um momento de desespero. As chances de eu falhar eram muito altas. Ainda assim, apostei tudo na promessa do abutre e vendi uma fraude para as pessoas além do meu púlpito.

Sempre que via aquelas centenas de olhares enfeitiçados, com altas expectativas em mim e na minha missão suicida, eu me pegava imaginando se o que eu desejava não era o contrário: que todos fossem exterminados.

A escuridão dentro de mim crescia.

Um mês após meu aniversário de vinte e um sóis, os portões se abriram para a deixa das caravanas de segurança. A cidade estava movimentada, como o esperado, e as multidões se aglomeraram para os festejos na avenida principal.

Eu havia feito alguns planos previamente, e os pus em moção. Antes que meus companheiros subissem à caravana frontal, tomei o controle dela às escondidas e parti, deixando as caravanas traseiras para trás.

Só eu era imune ao Declínio. Os efeitos da droga só valiam por trinta dias após o início do uso, portanto, usar os estoques que me foram fornecidos não adiantaria de nada. Se, por ventura, eles viessem comigo, morreriam em vão.

Por sermos uma das cidades mais próximas da Torre dos Filósofos, o trajeto a ser percorrido era relativamente simples. Mesmo sem me guiar pelo mapa, eu podia seguir pelas planícies e, eventualmente, chegaria lá.

Não me despedi do meu pai. Supus que ele não ligaria, já que também não ligou quando ordenou a parada do tratamento da minha mãe e do meu avô. Não havia mais ninguém a quem eu direcionasse afeição naquela cidade.

Dos meus pertences pessoais, trouxe apenas minhas pesquisas sobre alquimia, minha coroa de louros e a carta do vovô. Nada mais era necessário.

Talvez eu tivesse cometido mais um erro, mas eu nunca, nunca cederia às Mãos do Mundo. Não importa o quanto elas me esmagassem, me sufocando até perder o fôlego, eu não morreria sem antes lutar por um milagre.

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