Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 6: Consciência Pesada

— Por quê…? Por que ele fez isso com vocês? — Galdino Taira erguia levemente a cabeça de um habitante jazido. — Era para eu morrer hoje, Amochiom! E não eles!

Ele repudiava o cenário formado na sua visão. Seus irmãos do Doom Stormbolt agonizavam no solo barrento. Alguns corpos já estavam frios como uma geleira, e outros estavam mais imóveis do que estátuas vivas.

O assassino responsável já estava muito longe, mas Galdino ainda desejava acertar as contas. O dia que era para ser a redenção como um devoto, tornou-se o sofrimento que carregaria ao longo de toda sua vida.

Poucos adultos ainda rastejavam na lama, com uma expectativa de que Galdino ainda poderia libertá-los da dor e dos pecados. Ao escutar o atrito entre as pobres vestes e o chão sem asfalto, ele olhou para os arredores.

— Ei… — murmurou o morador. — Ainda dá tempo… Por favor… nos salve desta realidade…

— Mas… como? — lamuriou. — Eu não cumpri minha promessa… e agora o sangue do nosso povo mancha nosso lar!

— Não… — outro residente respondeu. — Ele banha os corpos que serviram de escudo para que você pudesse nos libertar…

— Eles morreram por minha causa! — gritou. — Era ‘pra eu ser o que se sacrificaria!

— Você está errado… eles defenderam a própria fé com unhas e dentes! — Um adulto tentou bradar, enquanto tentava se reerguer. — Não faça com que tudo isso seja em vão!

Galdino trancafiou suas cordas vocais, durante o tempo que misturava as lágrimas com o gotejar da tempestade.

— Você é nossa única esperança, Galdino! — Ambos disseram em uníssono. — Vá! Cumpra seu dever!

Ele franziu a testa e enxugou os olhos vermelhos.

— Tudo bem — falou, determinado. — Acenderei vossos corações com a luz de Amochiom!

Carinhosamente, ele baixou a cabeça da mulher que segurava. Apesar dos últimos momentos de fraqueza, ela encontrou forças para fazer um último pedido.

— Faça isso… por todos nós… — implorou, ao apertar o pulso dele.

— Sempre será por vocês — assentiu Galdino.

Realçado, disparou no trajeto do seu propósito e desviou de cada corpo gelado como a neve. Os pés descalços mergulhavam ferozmente nas poças marrons; e a chuva atingia cruelmente a face vigorosa.

Sem hesitar, saltou na subida íngreme que uma vez chocou com as costas. Levitar diante dos que o protegeram, era motivo de resiliência. “Se não fosse por vocês, eu jamais poderia ter chegado até aqui!”.

Enquanto sobrevoava, avistou uma área totalmente vazia, sem um mísero sinal de vida.

— O quê? — Ele arqueou as sobrancelhas.

Ao pousar na viela, apenas a água, os destroços e a ruína eram os seus companheiros. Se perguntou inúmeras vezes onde estavam os stormboltinos que cultuavam ali.

— Onde está todo mundo?! — Ele olhou nos arredores. — Espera… cadê o poço?!

Ao mesmo tempo que procurava seus descendentes, ele caminhava para o poço sem fundo no qual iria adentrar, onde o mundo das tempestades e constelações infinitas, criadas por Amochiom, esperava por Galdino no final dele.

No entanto, sem a algiba era impossível concluir o dever da devoção inquestionável, uma vez que o sacrifício era para ser feito unicamente lançando-se dentro do limbo infindável.

— Não, não, não!!! — Com as palmas abertas, pôs as mãos no chão para procurá-lo. — Eu não posso fazer isso sem ele!!!

Sujou as mãos como uma criança brincando com argila, mas não encontrou nada além de terra imergida na tormenta. Desesperado, ele correu de canto a canto para buscar pelo intermediador entre ele e o seu réquiem. Mesmo que soubesse que não ia resultar em nada, a ilusão de que iria recuperar o que perdeu, o viciava com uma confiança eufórica.

— Droga!!! — Ele fitou o céu e vociferou. — Por quê?! Por que, Amochiom?!

Promessa não é só dívida, é lealdade com aqueles que amamos. Poderia ser até o mais robusto projétil de fogo, ele doeria menos do que o senso de incapacidade de acatar um juramento, que era como uma facada quente e lenta. Galdino chorava aos prantos e embrulhava o peito com o desgosto de si mesmo.

À medida que se submergia no temporal, ouviu alguém afundar os pisantes no chão, logo atrás.

— Quem é?! — Galdino encarou de rabo de olho.

— Calma, eu não vim te machucar — disse Sagna, e fez um sinal com a mão.

Diferente de Lotus, Sagna percorreu a rota até o santuário de uma maneira mais controlada. Venceu facilmente os inimigos que batiam de frente e lidou com poucos desmoronamentos de casas ou comércios.

— Você não é daqui… não é?! — furioso, Galdino não o reconheceu.

Hmm… não — falou. — Eu só tô aqui para levar meu aluno de volta ’pra nossa pousada. Esses jovens de hoje em dia são complicados… — Ele abriu um leve sorriso.

— Aluno?

— Isso! Ele é bem fortão e gosta de usar camisa preta.

Flashbacks ecoaram na mente do Galdino.

— Não pode ser… — Ele arregalou os olhos. — Aquele garoto é o seu aluno?!

— Você o viu? — Sagna se aproximou.

— Ele estava sendo perseguido por aquele cretino… Mas, agora não sei onde ele se meteu.

— Bom… suponho que ele esteja por perto. — Sagna meneou a cabeça para os lados. — Preciso encontrá-lo logo!

Sagna passou a andar na direção do santuário.

— Espere!! — Galdino o segurou. — Onde acha que está indo?!

— Procurar meu aluno, amigo.

— Ali — Galdino apontou para o oratório —, você não vai procurar ninguém! Ninguém entra nesse templo sagrado!

De súbito, o santuário começou a estremecer como em um abalo sísmico. O ruído do tremor invadiu a periferia das tempestades. Sem paciência, Sagna apressou os pés e seguiu em frente.

— Não tenho tempo ‘pra isso — disse. — Sai da minha frente!

— Não!!! — Galdino resistiu. — Você não vai passar!

— Taira!!! — Alguém rogou. — Seu desgraçado!

Das profundezas do Doom Stormbolt, o sacerdote ressurgiu como uma penumbra do que já foi. Próximo a uma subida, ele avermelhava o barro com uma tosse sangrenta. De joelhos, marcava o solo com seu bastão e liberava todo seu ódio contra o homem que sacrificaria.

— Você deixou aquele moleque passar! Você deixou!!! — praguejou.

— O quê? — Galdino ficou confuso.

— Ele está dentro da nossa casa sagrada, para tentar tirar nosso controle absoluto das tempestades! Ele quer a Pirâmide Vital da Tempestade! Todo estrangeiro cretino quer ela!!!

“Será que ele ‘tá falando do mesmo jovem que o cara falou?”, pensou.

— Mas, ele estava fugindo do assassino que matou nosso povo…

— Como é que é?! Você se opôs às ordens de Amochiom por dó?!

— Não… eu só…

— Eles querem nos roubar! Eles querem nos matar! E você ainda sente pena deles?!

— Me desculpa…

— Não! Todo stormboltiano têm de proteger o Santuário de Tlaloc!

Cabisbaixo, Galdino alimentava o coração com um arrependimento devastador. Curioso, Sagna assistiu a cena, entretido. “Como esse velho ainda consegue falar?”.

— Você não é digno de salvar os ‘vodarianos da tempestade’! Todo seu esforço para conseguir se tornar um servo eterno de Amochiom, foi em vão.

As palavras do idoso surtado martelavam a mente do adulto que almejava um paraíso chuvoso. O sentimento de culpa o fez incapaz de suportar o peso de libertar seu povo dos males cruéis. Entretanto, ele não pretendia deixá-lo sair ileso das responsabilidades.

— Então, por que você não impediu ele? — indagou.

— Não ouse me questionar! Eu tive que lutar sozinho!

Com o cajado nas mãos e ofegante, mirou na direção de Galdino e preparou um ataque.

— Você me decepcionou — lamentou. — Recomece todo o ciclo que o permitiu chegar até aqui! — Ele envolveu o mastro com água e lançou-a como uma rajada.

Como um míssil, o golpe percorreu um curto caminho para atingir o peito de Galdino. No entanto, o ancião não esperava que ele ia ser interrompido.

— Já chega. — Sagna neutralizou o ataque ao movimentar o braço para cima. — Você está completamente maluco, se acalme!

— Não interfira!!! — Ele bateu o báculo de madeira no chão.

Como um trovão, um catastrófico canhão hidráulico irrompeu dos oceanos e atingiu fortemente Galdino, o que o jogou para longe do santuário. Não deu tempo de Sagna ter reações.

— O quê?! — Sagna fitou Galdino nos ares.

— Você é o próximo, careca maldito! — ameaçou.

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Enquanto uma batalha entre dois velhos parrudos era travada, a casa havia caído para Lotus, literalmente. Uma chuva de entulhos e a sensação de ter uma bigorna nas costas era o verdadeiro terror para ele. Contudo, ainda tinha uma carta na manga, mesmo que essa pudesse executá-lo.

— Não tenho outra escolha. — Revigorado com um prana puro, ele encheu os pulmões de ar. — Me dê forças, Heart Discharge!

A batida do coração ressoou como um tambor, implosões de prana dominaram o interior do jovem. Novamente, no auge do seu potencial, passou a se sentir poderoso.

— Eu não vou cair aqui! — bramiu ao exalar o florescer da sua juventude.

Diferente dos outros momentos que utilizou o Heart Discharge, dessa vez ele vem acompanhado com um prana legítimo das tormentas, o que eleva ainda mais os atributos de resistência e força. Tal prana que percorre inversamente no seu fluxo corporal, limpa as impurezas e o faz se sentir uma divindade.

Com pujança, abate a superfície e deixa a marca dos seus pés cravadas eternamente na pedra envelhecida. Devido ao aprimoramento, conseguia movimentar-se contra o suposto aumento da gravidade.

Pedregulhos e detritos impactavam com a cabeça e os ombros, mas não o impossibilitava de avançar, apesar de ferir levemente ambos.

— Eu vou passar por aquela porta, nem que seja a última coisa que eu faça! — Ele iniciou as passadas violentas.

Acreditava que a única chance de sair vivo dali e, ao mesmo tempo, cumprir o objetivo, era ultrapassar pelo portal que uma vez o ejetou para trás. Sem medo, continuou o caminho do seu destino.

Os enormes pilares que ainda sustentavam a ruína, despencaram sem compaixão. O estrondo do choque com o solo vibrava o local. Se qualquer um deles desmoronasse em cima do bombado, seria o fim.

— Pilar filho da…! — Lotus desbravou um soco revoltado contra o pilar jazido na sua frente.

Com a manopla de couro e ferro, desferiu um potente golpe no suporte do santuário, o que o despedaçou por completo. 

Apostou tudo no poder que recebeu, não podia voltar atrás. O andar destemido e a confiança em si, evidenciava o foco total juntamente com o resultado do amadurecimento. Lotus estava preparado para o que desse e viesse.

Ao correr para a porta, um pilar massivo estava prestes a afundar o jovem como um martelo atingindo um prego, todavia…

— Não vai me impedir! — Lotus moeu a estrutura acima com um golpe devastador.

O salto imponente combinado com a astúcia da porrada, foram suficientes para botar o pilar a sete palmos abaixo da terra. Lotus se surpreendia a cada investida bem sucedida.

As esculturas dos antigos Vitais se desfaziam gradualmente. Perder algo de tamanho valor histórico era uma lástima para toda Voda. A falta do conhecimento de tais figuras, seria como apagar o passado que moldou a forma como os vodarianos pensam e agem.

Rapidamente, sem amparo dos pilares, o santuário começou a derrocar. A tempestade de fora invadiu o interior e pedaços do teto aluíram como meteoros, o que enterrava o antigo oratório.

Para se defender, Lotus tirava com ambos os braços cada resíduo volumoso. Porém, aos poucos se esvaía a força que possuía. Tinha de se apressar, senão seria tarde demais.

— Parem de cair!!! — Ele esmagou um escombro ao bater palma.

Ele estava perto da porta, mas tinha que esgotar seu estoque de energia para correr contra o tempo.

O último vestígio da ruína caiu. Um pedaço enorme fincaria Lotus no cemitério dos monumentos. Sabia que não teria como rompê-lo, então acelerou igual um guefalcão — animal que mistura as características de um guepardo e um falcão — para cumprir sua meta.

Pouco distante da morte, Lotus utilizou o restante da sua força para pular em direção a linha de chegada e adentrar ainda mais no santuário em destruição. A essa altura, a estátua de Amochiom já havia sumido, o que o deu a hipótese de que sem ela, a passagem estaria liberada.

A sombra do fragmento do teto escureceu toda a ruína e tampou o gotejar da tormenta.

— Jamais me derrubará! — Ele se lançou contra a gravidade, no azimute da sua vontade.

Como um planeta ao colidir com outro, a rocha engoliu todo o corredor e causou uma onda de choque avassaladora, o que assolou todo o litoral de La Esperanza.



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