Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 7: Ancestralidade

— Estou… vivo? — Ele abriu os olhos.

A quina da escada pressionava suas bochechas, enquanto sentia um desconforto na forma que jazia. Um degrau socou a mandíbula de Lotus no momento em que aterrissou, o que causou uma dor pontiaguda.

Feixes de luz instáveis invadiam a escadaria curvada e iluminavam pausadamente as laterais. A melodia da tempestade era eterna, mas não tão aconchegante como uma chuva da madrugada. O aroma já não era mais extraordinário, ficou comum como de uma pluviosidade.

Já não carregava mais um caminhão nas costas, a gravidade finalmente tinha estabilizado. A mudança abrupta de campo gravitacional o fez sentir o corpo tão leve quanto uma pena. Mesmo no chão, a mente levitava na atmosfera gelada.

— De volta ‘pro mundo normal. — Lotus começou a levantar.

A curto prazo, os efeitos colaterais do Heart Discharge resultavam em um sono brusco e uma desaceleração dos batimentos cardíacos, o que gerava uma indisposição para atividades que requeressem um esforço físico maior.

De pé e curioso, decidiu ver o que aconteceu com o santuário.

— Ué — Ele arqueou as sobrancelhas. —, será que o santuário foi enterrado?

A escuridão dominava o corredor principal, os escombros o afundaram em meio a tormenta. A única lembrança que restou dele era o cheiro do teto mofado, tal qual criara uma coceira no interior das narinas de Lotus.

Quaisquer tentativas de voltar atrás foram trancafiadas com os destroços de um oratório abandonado. O jovem tinha duas escolhas: ou seguia em frente, ou ia adiante.

Semelhante a escadaria que encaminhava para o segundo andar, a que Lotus se encontrava também era curvada para direita. Entretanto, ela tinha o tamanho suficiente para espetar as panturrilhas do bombado.

Sem enrolação, começou a escalá-la.

— Estou mais perto do que nunca! — alegrou.

O trajeto que percorreu até o momento era tão importante quanto o resultado que ele traria. Contudo, a recompensa pelo esforço para encontrar o Vital da Tempestade era uma incógnita.

Enquanto subia de degrau em degrau, reparou que nas paredes haviam desenhos extraordinários, eram como hieróglifos egípcios. O primeiro deles, representava diversos vodarianos ajoelhados em uma fileira perante um homem índigena que controlava os trovões.

Lotus analisava com cautela os detalhes, embora já tivesse visto tal imagem em livros da faculdade. Tirou as manoplas e pressionou a mão nas figuras traçadas, para sentir o frio da ancestralidade da obra original.

Ao menear a cabeça, avistou a segunda simbolização. Uma enguia de 6 braços musculosos, juntamente com uma cobra-louva-a-deus e um tardígrado gigante com asas de dragão, guerreavam entre si utilizando seus poderes. O fogo emanava da boca do tardígrado, atacando a enguia que se defendia com relâmpagos, enquanto a cobra envolvia ambos e preparava um corte fatal com as garras violentas.

Interessado, Lotus foi averiguar a figuração que nunca havia se deparado. Todavia, quando se aproximou, escorregou e mergulhou o braço em um degrau.

— Porra, mano! — reclamou.

O tríceps vigoroso aguentou o tranco da queda, que não o feriu tanto. Porém, percebeu que deslizou em algo líquido com um odor de sangue. “Que cheiro esquisito!”, pensou.

Ao se reerguer, voltou a olhar a representação.

— Será que essas são as três divindades do pranamentarismo? — indagou durante o tempo que imergia a mão na parede.

Após examiná-la, fitou a continuação do caminho e manteve o avanço. O eco dos seus passos retumbava nas laterais e retornava para os ouvidos. No entanto, pisou em algo que não estava tão rígido quanto o chão, e a ressonância cessou.

— O que é isso? — estranhou.

Em seguida, um raio de fora clareou a área novamente e o jovem captou no que havia tocado.

— Caramba! — Ele arregalou os olhos e soluçou de susto.

O corpo de um guerreiro descansava em paz, prestes a se decompor. A armadura que vestia estava destruída e o sangue banhava ele e a superfície. Em choque, Lotus pôde pela primeira vez presenciar a pior consequência de uma batalha. Tornara-se ofegante e ansioso como nunca, mas estava ciente de que ele mesmo determinou o próprio destino.

— Será que vou ter o mesmo fim que ele?! — indagou.

Mesmo atônito, sua mente o impedia de recuar. Apesar dos Vitais não terem piedade dos que querem seu poder, Lotus quis se arriscar para obtê-lo. Ele imaginava que precisaria se aproveitar das condições precárias do ancião que controlava as tempestades, nem que fosse em uma luta.

Ao mover com cuidado os pés, desviou do soldado imóvel e progrediu no seu rumo.

— Preciso chegar ao topo — disse, ambicioso.

Enquanto galgava, reparou em mais um desenho. Estava esculpido três vodarianos, com cada um manuseando seus respectivos atributos: tempestades mortais, florestas selvagens e erupções avassaladoras. Um confronto árduo entre eles trazia à tona todo um passado de disputa de soberania.

Lotus julgou ser o mais importante, pois acreditava que nada mudou desde a época que foi desenhado até os dias atuais. Voda era assolada por combates de caráter ganancioso, o que destruía as formas de vida aos poucos.

— Isso reflete exatamente a realidade de Voda — falou. — Eu quero mudar isso de uma vez por todas! — Ele martelou levemente a parede com as mãos e voltou a andar.

Conseguiu ver a passagem que daria acesso ao lado de fora. Porém, quando se elevou em mais alguns degraus, viu algo que seria como uma tatuagem na memória.

— Ah não… — Lotus parou.

Pilhas de carrascos abatidos pintavam a superfície, o que criou um verdadeiro cenário de terror. Estavam espalhados por todo o restante da escadaria, alguns jazidos e outros apoiados na parede.

— Mesmo esse tanto de soldados não conseguiram bater de frente com ele?! — Se questionou. — Imagina eu… sozinho!

Treinamentos, armaduras, equipamentos, armas… a única coisa que o jovem tinha em comum com os combatentes era a força de vontade. O restante, nunca nem chegou perto de ter.

O caminhar tornara-se automático, alçava as pernas sem nem perceber. O vão resplandecente no final do trajeto era como os portões para o mundo dos mortos; e o marchar de Lotus era como de um zumbi.

— Eu ‘tô completamente lascado… — lamuriou.

O último hieróglifo estava estampado ao seu lado. Mas, ele não era como os outros: ele soava novo, bem feito e com cores mais vivas. Não aparentava ser algo antigo, ao considerar um desenvolvimento mais moderno.

Um planeta recheado de cores azuis era retratado, enquanto três vodarianos lado a lado apontavam os braços para ele, cada um com um elemento que variava entre: água, planta e chama. “Isso seria os Vitais controlando Voda?”, pensou Lotus.

Contudo, havia mais uma pessoa na imagem. Ela estava atrás do trio e era consideravelmente maior que eles. O cabelo tinha três rabos de cavalo e, com uma única mão apontada para frente, era ejetado um fio que se dividia em três partes e conectava com os indivíduos adiante.

— Quem é esse cara? — Lotus olhava bem para a figura.

Pela primeira vez, viu uma arte histórica bem diferente. Não era algo enaltecendo os Vitais, muito menos uma cultuação a algum deus. Eram apenas três pessoas imponentes, fora dos seus pódios com cordas amarradas nas cinturas.

Confuso, não cedeu ao entusiasmo de estudar melhor o homem em questão e escolheu terminar a rota da ruína. 

Com passos robustos, calcorreou para sair do cemitério dos armíferos. “Já cheguei até longe demais!”.

Assim que finalizou o deslocamento até a passagem clareada pelos trovões e submergida pela chuva incessante, marcou a sola dos pés para sempre na dianteira da divisória entre a escadaria e o lado de fora.

— Que chuvarada, mermão! — Ele moveu o braço até acima da cabeça.

Em uma grande plataforma circular de pedra, Lotus não conseguia ver as extremidades laterais. A rocha envelhecida coloria a superfície, enquanto a pequena mureta cercava a base.

Distraído pela cena tempestuosa com nuvens cinzas, ele correu até a mureta de pedregulho sem prestar atenção aos arredores.

— Que coisa linda! — Ele disparou na direção do horizonte e mergulhou os pés nas mini-poças entre as pedras.

Lotus era fanático por climas nublados com chuvas e trovões intensos. Ademais, admirava muito a bravura de qualquer oceano mediante a uma tormenta. Com esses dois fatores combinados, ele assistia um espetáculo que sempre sonhou em ver.

— É muito… lindo… — Ele subiu em cima da mureta e paralisou perante os fenômenos naturais.

Depois de tantos problemas para completar o caminho, correr em uma comunidade cheia de desafios com inimigos fervorosos; enfrentar imprevistos em uma ruína que pesava suas costas; e repudiar o horror de corpos eternamente desligados, Lotus se sentia como um esportista ao ganhar um prêmio de melhor do mundo. Os globos oculares brilhavam mais que o sol, enquanto o sorriso era de orelha a orelha.

Para ele, era tão magnífica a mistura entre a tempestade e os oceanos que até esqueceu do seu real objetivo. O vento que tocava sua pele, confortava o corpo cansado dos perrengues que passou; as roupas dançavam em meio ao fluxo do vendaval. Se Lotus fosse visto por trás, seria como deslumbrar um homem destemido no topo da montanha.

— É incrível, não é jovem? — disse alguém.

A voz que saíra de um idoso experiente e poderoso, penetrou nos tímpanos do jovem. Na hora, abriu os olhos e travou. Tinha se tocado que o vodariano que se redirecionou a ele, poderia ser o seu ceifador.

Hesitando, virou a cabeça para trás.

— Você… — murmurou Lotus.

Sentado ao lado da entrada, as águas da tormenta banhavam as cicatrizes de guerra do ancião, ao mesmo tempo que lavava as feridas. A pele enrugada evidenciava os longos anos de vida, mas a definição do corpo mostrava que ainda era ativo. Linhas sinuosas azuis cobriam as veias do experiente indígena.

Abismado, Lotus amedrontou o estado dele, que nunca simbolizou a fraqueza.

— Você… é… — Ele desceu da mureta.

— É impressionante saber que um jovem aprecia um clima triste como esse — falou.

Ainda sem disposição para fazer qualquer palavra sair, Lotus tentava vencer a pressão que enfrentava.

— Você é o… — Ele continuava a tentar.

— Vamos, garoto. Pergunte logo! — clamou ao abrir um sorriso.

Por mais que a pergunta que faria fosse retórica, ela naturalmente escapou.

— É você quem controla tudo isso aqui?! — Lotus fez um movimento com o braço para exibir o local.

— Não… Se eu controlasse, jamais passaria meus últimos momentos sendo afogado por essa chuva.

— Mas… você não é o Vital da Tempestade, Rudá Tlaloc?

Rudá bafejou enquanto amargurava o coração.

— Me chame como quiser — falou. — Para muitos, sou um deus; para outros, sou um peão.

— Um… peão?

— Sim — confirmou. — E… para mim, sou apenas um velho que a vida toda protegeu um poder que ninguém deveria ser capaz de ter.

Sem compreender, Lotus não tinha respostas. Destruía aos poucos a imagem que tinha dos Vitais.

— Me diga, meu filho — disse carinhosamente. — Qual é o seu nome?

— Me chamo Lotus Sutol.

— E o que o traz aqui? — indagou, mesmo que soubesse a resposta.

— A Pirâmide Vital da Tempestade. — O medo não o impediu de expressar sua vontade.

— Claro… — Rudá soltou uma risada. — E quem não vem ‘pra isso, né? — Ele bufou fortemente. — Mas… o que me intriga é o fato de um jovem como você, querer desperdiçar sua vida de tal forma.

— Eu não olho como um desperdício… eu quero mudar as coisas!

— Não é questão de querer, Lotus. É questão de estar disposto a ver muito mais cadáveres do que você viu nas escadas.

— Mas eu estou disposto! — bradou. — Mesmo vendo todos eles, eu quis vir até aqui!

Inconformado, Rudá se reergueu calmamente.

— Já que se diz disposto… vou lhe mostrar, de fato, o que um Vital tem de aguentar. — Ele começou a correr na direção de Lotus.

Ao ver Rudá avançar na sua direção, Lotus inspirou fundo para ativar sua habilidade. O temor e a persistência entraram em conflito no seu cérebro. Entretanto, uma certeza ele tinha: Estava prestes a lutar com o homem que, por décadas, irrompeu os trovões mais devastadores dos céus.



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