Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 8: Submissão

— Você que escolheu esse destino. — Rudá mergulhou a mão no peito de Lotus.

Essas foram as últimas palavras que Lotus ouviu. Em uma velocidade incapturável, Rudá avançou na direção do jovem com a intenção de obliterá-lo. Bom… pelo menos era o que Lotus acreditava. Nem míseros segundos foram disponibilizados para o bombado ativar o Heart Discharge.

Em um ato de bravura final, Lotus cedeu aos mais violentos brados.

— Não!!!

— Adeus, Lotus Sutol.

Ao afofar raivosamente o peitoral do jovem, Rudá eletrocutou cada átomo presente no Lotus. O corpo do universitário não teve piedade de expelir os raios através dos olhos, o que os tornou brilhantes como faróis.

O jovem que um dia sonhara em ser a luz resplandecente de Voda, estava cada vez mais a se suprimir na escuridão eterna. O gotejar se misturava com a tristeza de não cumprir o seu maior desejo, e os raios o acorrentavam para sempre no seu sofrimento.

“Talvez, isso realmente não fosse ‘pra mim…”, nos últimos segundos, martelou os pensamentos com a tortura da incapacidade.

Como toda jornada, essa também era findável, e o que restaria de Lotus seriam apenas as lembranças cativadas nos corações daqueles que o amam.

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— Preciso de reforços! — O carrasco sangrento que, uma vez assolou a comunidade, suplicava em um dispositivo de comunicação presente no braço. — Aquele moleque conseguiu entrar no santuário! Se ele pegar a Pirâmide Vital da Tempestade, o chefe vai nos matar!

— Seu cretino… eu disse ‘pra você não executar essa missão só com seu esquadrão! — respondeu um homem. — Era ‘pra você ter alertado o alto escalão da Voquinity que ‘cê ia fazer isso!

— Eles sequer me dão ouvidos! — gritou. — Não tinha o que fazer… eles me subestimam muito!

— Puta merda… — reclamou. — Bom, se a situação se agravar, a Voquinity irá enviar um navio de guerra para próximo da costa.

— Vocês vão esperar a água bater na bunda ‘pra fazer alguma coisa?! Esse garoto não é fraco do jeito que ‘cês tão imaginando!!!

— ‘Pra sua sorte, eu ainda consegui enviar meus soldados pela entrada do Doom Stormbolt. Já fiz o máximo que pude ‘pra te ajudar e tentar comprovar sua teoria maluca, na qual nem eu mesmo acredito! — Ele encerrou a chamada.

Quase que enterrado em uma casa de madeira, Jules Maxim, o articulador do caos na periferia de capa cinza e avermelhada, remoía a mente por não conseguir impedir com que Lotus entrasse no santuário.

— Que ódio!!! — Ele deu um soco no chão. — Aquele sacerdote maldito… ele mal se importou com o moleque que queria roubar o que eles tem de mais precioso!

Sozinho, amargurava que não havia obtido sucesso na sua tarefa particular. Contudo, ainda não havia desistido de atalhar um vodariano que pretendia passar por cima dos planos da Voquinity — organização poderosa que visa o monopólio da soberania.

Ao tirar os entulhos de cima dos ombros e das pernas, Jules se levantou furioso.

— Não importa o que aconteça… ele não pode se tornar um Vital! Nem que eu precise usar meu Tonabless!

Tonabless é a nomenclatura que agrupa todas as habilidades que os vodarianos podem desenvolver em meio ao esforço excedente. Heart Discharge, por exemplo, é o Tonabless de Lotus.

Nas ruas da comunidade, Jules disparou rumo ao santuário novamente e fez a residência destroçada comer poeira. Em meio a tempestade infindável, a sede de concluir seu dever a todo custo era maior do que qualquer obstáculo.

Mesmo que rasgada, a capa manchada dançava com o vendaval cortante. O solo barrento banhava a calça que cobria a panturrilha bem treinada. As consequências do último embate não o impediu de se preparar para um conflito maior.

— Posso estar sem a minha equipe… mas ainda tenho a mim! — Ele acelerou o passo.

— Perigo, perigo, perigo! — Uma voz robótica o alertava através do mesmo aparelho de comunicação.

— O quê?! — Ele se escondeu em um comércio ainda não destruído.

Semelhante a um despertador irritante, o equipamento de Jules fez seus ouvidos sangrarem. No entanto, apenas ele poderia ouvir, graças a conexão com um mecanismo eletrônico de audição localizado dentro da orelha.

Feixes de luz que saíam diretamente do seu punho formavam uma tela virtual, para mostrar as informações do alarme.

— O que ‘tá acontecendo?! — Ele passou a avaliar a situação. — Ah… era só o que me faltava…

A imagem de um homem considerado um criminoso internacional pela Voquinity, era exibida na qualidade máxima. Tal vodariano tinha uma aparência indígena, não passava dos 30 anos; era conhecido como o desertor das tormentas; e carregava duas armas que transformavam qualquer elemento ou objeto em munição.

Discretamente, Jules espiou a área envolta em busca da presença dele. Sabia que, por mais força de vontade que tivesse, ter que lidar com tal indivíduo atrasaria os seus compromissos.

— Onde esse cara ‘tá? — Ele movia a cabeça para os lados. — Ah, achei.

Ao encontrá-lo, olhou de rabo de olho e semicerrou a visão. O procurado estava no lado esquerdo da rua de barro estreita, agachado próximo a um indivíduo jazido em uma habitação aniquilada. Jules percebeu que acontecia uma conversa entre ambos, na qual o alvo da Voquinity concordava com algo.

— Do que eles estão falando? — sussurrou.

De repente, com o sobretudo preto que o protegia, o homem deu um salto implacável para longe do vodariano debilitado e, com as duas armas, descarregou os pentes na superfície, utilizando o impulso para se manter no ar.

— Ele ‘tá indo ‘pro litoral? — Ele fitou o fora-da-lei acima do Doom Stormbolt.

 Com balas de fogo, explodia o restante dos resíduos que sobraram nas vielas e causou estrondos por todo o território. A direção que sobrevoou não era o mesmo caminho que Jules pretendia prosseguir. Sem compreender quais seriam os objetivos do indígena armado, esperou ele se dissipar na névoa da chuva e aproveitou para ir em frente.

— Que bom que ele não foi por aqui. — Ele voltou a correr.

Embora fosse adaptado para enfrentar inimigos tenebrosos, não era motivo de vergonha recuar por hesitação. Preferia manter a integridade física e concluir o dever, do que ter coragem e morrer.

Enquanto afundava os pés na lama, escutou o marchar de inúmeros passos. Atento, imediatamente cessou o andar e meneou de leve a cabeça para trás.

— Não acredito que mais gente vai me atrapalhar… — Ao abrir as mãos, preparou uma rajada repulsiva e ficou em postura de batalha.

— Espere! Somos reforços! — Um grupo de soldados vociferava.

— O quê?! — Ele movimentou o pescoço para frente e arregalou os olhos.

Nesse momento, as írises do carrasco reluziram drasticamente, o que evidenciava a sua esperança. Com a boca semiaberta, paralisou perante o imenso batalhão que se aproximava.

Imersos pela chuva, os guerreiros da frente empunhavam imponentes fuzis; os de trás seguravam bazucas colossais. Todos estavam envolvidos por armaduras resistentes como aço, dispostos a guerrear com honra.

Quando chegarem bem próximos, finalizaram o caminhar.

— Maxim — O soldado da linha de frente ofegava como um maratonista. —, estamos ao seu comando a pedido do general Hancor, serviremos às suas ordens!

— Então ele realmente mandou vocês… — Jules soltou uma leve risada. — Muito bem! Todos vocês!

Ao baterem continência, juntaram os pés e ficaram de cabeça erguida, o que mostrou o máximo respeito pela hierarquia de poderes. Eram devotos a Voquinity como um patriota que serve ao seu país — ou governante.

— Iremos invadir o Santuário de Tlaloc e levar para a casa a Pirâmide Vital da Tempestade! Faremos isso a qualquer custo! — ordenou Jules.

Gritos de guerra foram ecoados por todos os cantos, o que encheu a alma de cada combatente com a vitalidade do senso de lutar. Erguer as armas não apenas figurava o poder bélico, como também homens que nasceram para digladiar.

— Vamos!!! — rogou Jules.

— Espere… — Um vodariano derrotado no solo tentou falar.

Antes de se apressarem ao santuário, o líder do corpo de soldados olhou para o indivíduo próximo a morar debaixo de uma lápide, que possuía um imenso hematoma na divisória do seu peitoral. Todavia, notou que seus subordinados não avançaram.

— Vão!!! — Ele jogou o braço para o oratório e fez um sinal para progredirem.

Então, o aglomerado de batalhadores partiu. Passos monstruosos tamborilaram a superfície marrom e colorida de stormboltinos desligados eternamente. Com apenas os dois presentes, Jules se abeirou e flexionou os joelhos até abaixar totalmente.

— O que estava conversando com aquele marginal? — indagou.

— Não importa… — bafejou. — Eu não tenho nada ‘pra te falar.

Atroz, Jules pressionou o pescoço do ser arruinado e o alçou bem devagar. Os portões de oxigênio trancafiaram e sequer um respingo atravessava a traqueia. Agonizar a dor era o máximo que o pobre homem poderia fazer.

— Se você não falar, nunca mais poderá cultuar seu maldito deus! — Ele afrouxou ligeiramente a mão.

— Apenas termine o serviço… — pediu. — Eu já estava programado ‘pra ser sacrificado antes de você acabar com tudo. — respondeu Galdino Taira, fracamente.

Jules arqueou as sobrancelhas.

— Eu te conheço de algum lugar… você não era o cara que tava andando naquele corredor com aqueles doidos te reverenciando?!

— Não são doidos… eles são o meu povo. Ao menos respeite nossa cultura! — Galdino fitou-o, determinado.

Sem paciência, soltou-o sem se preocupar com a queda dele. Galdino mergulhou na lama e logo em seguida tossiu. Espinhos de ferro furavam seu coração por não conseguir fazer absolutamente nada contra o homicida que devastou seus descendentes. 

Jules entendeu que, se nem a morte intimidou um indivíduo sem nada mais a perder, então não teria porquê insistir em uma resposta.

— Que perda de tempo… — Ele retornou a rua.

— Por que estão fazendo isso? O que vocês ganham com toda essa destruição?! — indagou, revoltado.

O líder do esquadrão bufou e, logo após, mirou as mãos no Galdino, que estavam

circuladas por um feixe de prana alaranjado.

— Porque os Vitais são o problema desse mundo. — Jules ejetou um projétil transparente no sentido do alvo.

Catastroficamente, Galdino perfurou linearmente casas e comércios após ser lançado por uma robusta repulsão. Com o corpo imobilizado e extremamente ferido, atingiu paredes de madeira e de tijolo, o que resultou em mais estruturas quebradas e uma marca de assolamento na periferia em que cresceu.

“Por favor, não permita com que a Pirâmide Vital da Tempestade caia nas mãos deles… e purifique meus irmãos para libertá-los desse destino doloroso, Amochiom, eu te imploro.”, clamou nos pensamentos, antes de se despedir eternamente de Voda.

— Se simpatiza com os Vitais, tem que ser punido! — Jules sorriu.

O fiel a Voquinity se sentia o verdadeiro paladino da liberdade quando expurgava alguém que era contrário ao propósito da sua amada organização. Qualquer opinião que fizesse oposição, era estritamente condenável.

Satisfeito, foi em busca dos seus submetidos para finalmente adentrar no templo. Inundou ainda mais as vestes com água e terra. Guiou o prana para os braços, e assim se preveniu contra qualquer adversário.

Quando completou a rota até a subida íngreme que dava acesso a plataforma do santuário, avistou vários militares parados e confusos.

— Ah não… — resmungou. — Não é possível que deram uma dessas!

Eles trocavam ideia entre si, como se não soubessem de nada. Irritado, pisoteou o barro até eles.

— O que ‘tá acontecendo aqui?! — gritou.

Chefia, a gente não sabe como subir nisso aqui. Nunca vi isso!

— Caramba gente… usem um pouco a cabeça! — Ele andou em direção ao ponto de pulo. — Saiam da frente!

Ao planejar um arranque virtuoso, disse:

— Aprendam como se faz!

Com toda a força, desbravou um salto que rasgou a atmosfera. Chocados, os guerreiros admiravam o truque para subir em algo tão inclinado.

— Que legal! — falaram em uníssono. — Vamos, vamos, vamos!!!

Enquanto Jules sobrevoava, colocou os braços para trás e, o prana que pincelava o corpo, passou a cintilar como o sol. Apregoou em nome da Voquinity e, de súbito, liberou uma lufada cruel.

— Você não vai conseguir, moleque!!!

Como um vulto, atirou-se para o oratório e rompeu os céus na velocidade da luz. Sagna, que estava caminhando para dentro do santuário após arremessar o sacerdote contra a mão esculpida do deus asteca, sequer avistou o assassino que pairou no ambiente.

De repente, uma multidão de combatentes surgiu das sombras. Focados, alinharam as artilharias e avançaram como touros para o destino imposto por Jules, o que obrigou Sagna a encerrar os passos.

— Parece que tenho companhia. — Sagna meneou a cabeça para trás.

— Boa sorte ‘pra enfrentar eles — ironizou o sacerdote, quase desmaiado. —, careca chifrudo!

— O poder das tempestades será nosso!!! — O grupo todo bradou e iniciou o extermínio.

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Submergido nas profundezas do oceano, sua única ação era liberar bolhas com o restante de ar que sobrou nos pulmões. Era engolido cada vez mais para um fundo infinito, onde a solidão seria sua melhor amiga.

— O mar irá te levar, garoto. — Uma voz grossa ressoou.

Abruptamente, abriu os olhos e o azul escuro dominou todo seu campo de visão.

— Onde eu estou? — indagou Lotus.



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