Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 9: O Refúgio de Amochiom

Eram águas azuis e sombrias.

Ao abrir os olhos, o sal do mar escuro os desidrataram e causou uma ardência insuportável. A solidão o acompanhava diante da imensidão do oceano, nenhum outro sinal de vida poderia ser contemplado. Era sugado para as profundezas, lugar umbroso onde perderia sua alma para sempre.

— Eu morri…?

— Volte para a superfície. — Uma voz imponente ressoou.

Percebeu que ainda estava com suas roupas feridas, mas sem as manoplas e os calçados. No entanto, não conseguia identificar onde estava, apenas imaginava que atuava como um náufrago se afogando.

— Ainda sinto meu corpo… — Lotus mexeu os pés.

Meneou a cabeça para cima e, no estilo borboleta, passou a nadar como um atleta, até encontrar o céu. Sem companhia, deslumbrava a piscina infindável sem hesitar. A água resistia à movimentação dos braços, o que lhe resgatou memórias da infância de quando aprendeu a se virar submergido.

Como a cauda de um tubarão, curvava as pernas para entrar em sincronia com o impulso gerado pelos membros superiores, o que o manteve em uma velocidade constante até o topo.

À medida que subia, raios de estrelas gradualmente clareavam o ambiente. A barreira entre o oceano e a atmosfera tornou-se mais aparente, sinuosos feixes de água eram semelhantes à esperança de um mergulhador perdido ao achar a sua saída. “Quase lá…”, pensava.

Com um arranque destemido, saiu da imersão e finalmente pôde inspirar tão intensamente quanto um afogado retornando à vida. As mãos dispararam até os olhos para aliviar a coceira implacável. O vento do lado de fora congelava o seu cabelo encaracolado.

— Bem vindo, Lotus…

— Caramba… — Lotus fitou aos arredores. 

— …ao Refúgio de Amochiom — recepcionou a entidade, com a voz semelhante a de Rudá.

  Sem palavras, o jovem teve um amor à primeira vista com a cena reproduzida. Inúmeras estrelas reluziam no céu azul marinho, interligadas por constelações que figuravam gotas e relâmpagos. Uma gigante esfera elétrica emergia a nordeste, como uma lua das dez horas da noite que alumbra o breu de uma rua abandonada.

— Isso é incrível… — As írises dele refletiam a estima incontestável.

Todo o temor e pessimismo que cativava há poucos minutos, evaporaram no calor da emoção de apreciar o cenário que envolvia seu peito com paz. Lotus acreditava fielmente que sonhava em um sono eterno.

— Esse é o lar da luz, dos oceanos e das tempestades. — O som da divindade reverberou por todos os cantos.

— Rudá… você ‘tá aqui? — indagou Lotus.

— Sempre estive, jovem — respondeu Rudá.

Lotus remexeu a cabeça para procurar por ele.

— Onde ‘cê ‘tá?

— Estou em cada partícula desse plano.

Não compreendia a existência do Rudá neste lugar.

— Por acaso… eu estou morto?

— Não, não está. Já o antigo Lotus… sim.

— Como assim? Então… minha alma veio morar em outro plano? — Lotus olhou para as mãos, infame por imaginar que o corpo atual não era real.

Rudá, onipresente, soltou uma leve risada.

— Ela só veio fazer um passeio — ironizou.

Perplexo, não entendia para onde havia sido encaminhado após ser eletrocutado pelo Vital. Cria que foi fritado como um peixe e, por sorte, sua alma pôde adentrar em um local que a purificava.

Sem muitas opções, decidiu explorar o novo mundo. A melodia proveniente do fluxo da água juntamente com o silêncio do ambiente limpava as impurezas da mente; a calmaria do mar sem ondas com uma temperatura morna era semelhante a uma hidromassagem.

Quando encarou o horizonte, as pupilas contraíram até exporem a heterocromia do jovem, com um olho azul como um rio, e o outro verde como a floresta. O cosmo elétrico era semelhante ao resplandecer do sol.

— Estou em um paraíso…

Enquanto se deslocava na direção do planeta de trovões, notou que o mar se desaguava em um ponto semelhante a uma borda infinita. Curioso, decidiu ir até lá. “O que será que tem depois dessa divisória?”.

Ao chegar próximo dela, se deparou com um céu azulado sem fim, repleto de corpos celestes.

— O quê?! — Ansioso para averiguar, nadou crawl até a extremidade.

A beira atuava analogamente a uma cachoeira, o mar escorria em uma altitude fora do comum. Por puro instinto, Lotus apoiou as duas mãos no limite do oceano, que era similar a um muro invisível sobreposto pela água. Pressionou-as para se elevar e ter uma vista panorâmica.

— É… eu devo ter morrido mesmo. — Lotus paralisou perante a obra de arte que o encheu de alegria.

— Os oceanos que banham Voda; os trovões que iluminam a escuridão; e as nuvens que colorem os céus, nasceram aqui — disse Rudá. — Deleite em um universo composto por água e estrelas elétricas com muito, mas muito prana divino.

As letras foram condenadas à prisão perpétua nas cordas vocais de Lotus. O enaltecimento pela obra prima era equivalente à admiração pela beleza de uma mulher vaidosa que, só de conversar, hipnotiza um coração clamando por afeto.

— Rudá… essas coisas não são reais, não é? — indagou.

— A realidade é única, Lotus. A forma como a interpreta, pode ser relativa — disse. — Irei lhe mostrar o porquê está aqui. Amochiom, apareça!

De repente, um monstro enorme emergiu das profundezas e expeliu as águas do oceano para todos os lados. O rugido vigoroso era como um chamado de guerra que ecoou pelos céus e vibrou todo o mar.

Rapidamente, Lotus tirou as mãos da borda e meneou o corpo para trás após ser encharcado.

— Amochiom?! — Os olhos quase pularam para fora.

A criatura era uma enguia elétrica de seis braços musculosos com cabeça de lampreia. O tronco era bem trabalhado, o trapézio camuflava o pescoço e o abdômen era como uma barreira de aço. Não possuía pernas, apenas uma cauda pujante que, com um movimento, poderia desencadear tsunamis brutais.

— Amochiom é um dos três Protetores de Voda — falou Rudá. — Diferente de mim, ele não carrega consigo a Pirâmide Vital da Tempestade. Sua alma protege esse plano, enquanto sua forma física é o escudo das profundezas de Voda.

— Então ele não é só uma lenda… — comentou Lotus.

— Para muitos, ele é a divindade oceânica do pranamentarismo. Não é muito de dar as caras em Voda, mas ele está sempre nos vigiando.

— Vigiando? — Lotus fitou o rosto do Amochiom.

— Sim. Amochiom assegura que o Vital da Tempestade não irá se corromper. A história diz que, quando o Vital Duplo se foi, três criaturas surgiram para evitar que os vodarianos fizessem o uso indevido das Pirâmides Vitais.

— Está falando do Heiko?

— E de quem mais seria, garoto? Protiv Heiko foi o único vodariano capaz de absorver o poder de duas Pirâmides Vitais.

Durante a conversa, Amochiom aproximou o rosto para encarar de perto o jovem. A boca de lampreia era como um buraco negro nas vistas de Lotus, e os dentes que a circulavam foram o suficiente para causar medo no bombado.

De frente a frente com um ser cultuado por milhões de vodarianos, Lotus sentia que o coração iria escapar do seu interior. O calafrio diante a presença de um deus impossibilitava o sangue de circular. O rosnar da enguia evidenciava a sua suspeita em um vodariano comum.

Ao reparar bem no fundo da garganta do monstro, notou que correntes de relâmpagos brilhavam do início do túnel até o estômago. A saliva escorria dos seus lábios como um animal faminto.

— Amochiom! Dê vida as estrelas! — ordenou Rudá.

Violentamente, Amochiom ergueu-se e rogou para as constelações. Lotus colocou rapidamente o braço na frente do rosto, para se defender do golpe hidráulico resultante do levante repentino.

A divindade canalizou um prana eletrizante na boca, o que formou uma orbe de relâmpagos que crescia drasticamente. Mirou no planeta de trovões e, com um vociferar intimidador, rasgou os céus com uma energia obliteradora.

— Caramba!!! — Lotus se abaixou e fitou acima.

Quando o raio atingiu a esfera, os inúmeros relâmpagos se dissiparam e foram

lançados diretamente contra as estrelas. A eletricidade percorreu cada astro na velocidade da luz, como se fossem fios de cobre interligados, o que retratou gigantescas linhas brancas sinuosas no céu. “O que ele fez?!”, pensou Lotus.

Em instantes, as listras desvaneceram-se e o céu retornou ao estado natural, porém com algumas constelações diferentes.

— Obrigado, Amochiom — agradeceu Rudá. — Volte a descansar.

Em seguida, Amochiom mergulhou a cabeça na água e, com os 6 braços, submergiu-se até o abismo do oceano. Foi questão de segundos até a divindade desaparecer totalmente, era extremamente veloz quando se tratava de nadar.

— Lotus — O ancião engrossou ainda mais a voz. —, suba na borda.

Sem questionar, o jovem se ergueu como se saísse de uma piscina. O vento gélido intensificou o frio da camisa ensopada. Entretanto, não havia nada visível para que ele pudesse se retirar por completo.

— Eu não posso sair, não têm onde eu pisar! — exclamou.

Um piso circular de água é repentinamente criado logo à frente.

— Agora tem.

— Mas isso é água…

— Você não vai cair, fique tranquilo.

Com cautela, Lotus se alçou em cima da pequena plataforma. Mesmo que aparentasse ser líquida, era possível esmagá-la com as solas dos pés sem destruí-la.

— A cada passo que você der, mais dessas aparecerão — falou Rudá. — Desça pensando que está em uma escada.

— Você tem certeza disso? — indagou Lotus, preocupado.

— Absoluta — confirmou Rudá.

Então, Lotus começou a se deslocar nos degraus de hidrogênio. Seus passos produziam minúsculas ondas nas poças rígidas, juntamente com um efeito sonoro de respingos.

Ao redor do céu, desenhos de diversos vodarianos foram formados, cada um com suas respectivas poses. Alguns eram guerreiros natos, enquanto outros eram magos virtuosos. As ligações entre as estrelas possuíam um toque de eletricidade, o que tornava as figurações ainda mais vigorosas.

— Assim como eu, eles também defenderam o poder da Pirâmide Vital da Tempestade — contou Rudá. — Eram vodarianos excepcionais que lutaram para proteger os oceanos e as tempestades de Voda.

Lotus preenchia suas memórias com as imagens ancestrais que via.

— Pode parecer incrível poder controlar os elementos que moldaram parte de Voda. No entanto — continuou Rudá —, os finais de cada um deles foram trágicos. Alguns se corromperam em busca de atingirem seu nirvana. Já outros, foram tão odiados quanto uva passa em um prato de comida. O destino imposto para um Vital nunca é feliz.

Inesperadamente, as representações sofreram ataques letais, o que simulou mortes melodramáticas. Gemidos de angústia derrocaram a consciência de Lotus e deixaram-o com a boca semiaberta.

— Por mais que lutemos por um bem maior, sempre irão nos atingir de alguma forma, não importa qual seja. O ódio dos vodarianos contra os Vitais aumenta a cada dia, e somos obrigados a seguir em frente. 

— E por que esse ódio todo?! — perguntou Lotus, com um tom agressivo.

— Porque estão contaminados por ideologias que vão destruir Voda — respondeu. — Nossa imagem foi manchada pelos Vitais antes da era de Protiv Heiko, e até por alguns após ela, não vou negar. A ambição de juntar a Trindade Vital nos assolou por milhares de anos. Entretanto, os que nos julgam também estão contribuindo para o fim da nossa existência. E… eu tentei mudar as coisas, mas… eu só fomentei os problemas.

— É por isso que quero fazer a diferença!!! — bradou Lotus. — Nosso planeta está entrando em colapso… ‘tá mais quente do que nunca e os desastres naturais estão matando cada vez mais os vodarianos! E ninguém entra em um consenso!!! Estou disposto ao que for para salvar esse mundo da ruína…

— Mesmo que isso signifique colocar todos os que ama em risco máximo?

— Eu irei protegê-los com tudo que tenho!

Após mostrar-se corajoso, Lotus pisou falso e quase caiu em algo que achava que era um degrau. O caminho aquático ficou reto e Rudá ordenou que seguisse por ele. O bombado estranhou a mudança de trajeto, mas continuou adiante.

O silêncio prevaleceu durante o tempo que andava, o que formou um clima sombrio. Imaginou que havia falado algo que desse gatilho no ancião onipresente, por isso também preferiu ficar quieto.

Subitamente, uma enorme plataforma circular de água surgiu. Acima dela, vários clones marinhos do jovem foram gerados. Eram imitações perfeitas, como se inúmeros espelhos estivessem em volta.

— O que ‘tá acontecendo? — estranhou.

Dos precipícios, clones de guerreiros emergiram como vultos com suas armas brancas atrozes, prestes a decapitar as réplicas do universitário.

— Salve-os, Lotus. Me mostre do que é capaz.

— Como assim, cara?! — questionou Lotus, atônito.



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