Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 13: Repouso Iminente

— Por pouco… que eu não morro… de novo…

A cama de areia que jazia não era nada confortável. A face queimava como um dedo ao encostar em uma frigideira quente; os braços ardiam com a invasão dos grãos do solo; e o ombro direito recebia de peito aberto os microrganismos locais.

Por muita sorte, o disparo explosivo não afundou seu crânio. A única consequência que sofreu com a onda de choque foi alguns ralados no corpo. “Se eles tivessem me acertado… eu teria ido de base. Vai ver, acordei com a sorte me sorrindo.”.

Revitalizado pelo prana elétrico após uma batalha intensa, seu coração vibrava com o Heart Discharge ativado. A missão de deixá-lo ligado por um período maior foi um sucesso, o que permitiu com que aguentasse o tombo lento na praia.

De certa forma, estava no auge da sua juventude. A Pirâmide Vital da Tempestade lhe fornecia as tormentas, enquanto seu tonabless lhe inundava com o florescer da vigorosidade. Lotus estava no topo do mundo, mesmo derrubado na superfície.

No entanto, a situação estava longe de se acalmar. Durante o tempo deitado na beira-mar, veículos de guerra da Voquinity emergiram do horizonte em busca de um poder ancestral.

— Eu não vou ter paz tão cedo assim… preciso acabar com eles de alguma forma, assim como eu fiz com aquele assassino! — Em meio a dor, Lotus submerge as manoplas no chão e se reergue como uma fênix.

Ao dar tapas nas luvas para eliminar a sujeira, ele fitou o vasto mar adiante, com as águas furiosas como a tempestade incessante. Apesar de perfurante, o gotejar gelado anestesiava levemente suas feridas.

Diante de dois titãs dos oceanos, o jovem notou que estava sendo almejado para a morte. Canhões imponentes o encaravam com ódio, prestes a expelirem um plasma corrosivo para sua alma. 

— Eu não posso cair aqui! Ainda estou vivo, mesmo depois de tudo que aconteceu. Eu ainda sou um Vital! — reforçou para si mesmo.

Sem enrolações e desesperado para sobreviver, Lotus correu até as águas para confrontar os navios colossais. Ele andou até o mar engolir sua cintura e usou sua imaginação para derrotar os seus imensos adversários, que canalizavam uma detonação avassaladora.

Mesmo sozinho, reparou que era agraciado pela ajuda da sua professora. Aeronaves eram arrebentadas com as rochas da Vion, como se fossem planetas lançados por catapultas, e capazes de suportar até o mais poderoso poder bélico.

Em instantes, mentalizou o ultimato para os inimigos, algo que acreditava que poderia executar. “Se eu posso controlar os oceanos, provavelmente isso pode dar certo…”.

Em meio ao vendaval, a camisa preta danificada vacilava enquanto cobria o homem determinado. O resto das roupas ensopadas não o incomodavam de forma alguma. Então, em um ato de bravura, mergulhou no mar e fincou as manoplas na areia. De repente, uma parede oceânica surgiu e o nível do mar subiu drasticamente. Debaixo d’água, Lotus bradou:

— Eu também não terei piedade!!!

A barreira passou a avançar na direção dos barcos, devorando tudo o que havia no caminho, semelhante a um tsunami. Eles revidaram o ataque com o laser azul claro, porém assim que atiraram, a onda atroz os virou de ponta cabeça e eles fissuraram as nuvens negras.

Não contente, os relâmpagos que passeavam pelas costas de Lotus foram guiados até as mãos e, como uma finalização, ele descarregou a energia no mar, o que deu um banho elétrico em ambos os navios e os fritou logo em seguida.

Nesse momento, Lotus foi envolvido pelos trovões e seu corpo reluzia mais do que um farol. A vociferação em nome da sua capacidade divina o tornava intimidador até para o mais faminto leãopotamo — espécie de animal que funde leão e hipopótamo em um só ser vivo.

Toda a água da orla foi direcionada para o desastre natural invocado por Lotus, o que deixou parte da costa seca como um deserto. Por um breve período, o jovem ficou agachado nas areias recém-submergidas.

— Isso deve ser o suficiente… — disse.

O berrar da quebra de onda estremeceu a atmosfera, e o zumbido do eletrocutamento jamais seria esquecido pelos tímpanos do Lotus.

Quando cessou o tsunami contrário ao continente, o mar retornou para o local de origem em um piscar de olhos, fazendo o jovem tomar um caldo e recepcionar o pélago diretamente nas narinas e nas orelhas. “Deu certo…”, pensou.

Rapidamente, colocou a cabeça para fora e agonizou com a dor no nariz, que logo depois assoou e aliviou. O áudio do ambiente estava abafado, a pressão havia dominado os ouvidos, mas liberou-a quando remexeu o crânio.

Os automóveis marítimos foram virados ao avesso, dormiram no mar após enfrentar um combo do Vital. Entretanto, ainda não havia acabado os problemas. A Voquinity não iria descansar até usurpar o artefato piramidal de Lotus.

Como consequência do uso de um poder imensurável, o cansaço deu um baque abrupto nos órgãos do jovem. Ademais, os efeitos do Heart Discharge chegaram ao fim, o que somou com o abate da Pirâmide Vital da Tempestade.

Enfraquecido semelhante a alguém que adoeceu, Lotus sentiu que um sono o enterraria no oceano. Com as últimas forças que haviam lhe sobrado, meneou o pescoço para o lado e visualizou a pirâmide colossal que ingeriu a plataforma circular.

Não falou sequer uma palavra, apenas deixou os raios circularem pelas suas costas e as águas lavarem sua manopla. A postura firme e virtuosa estendia o tamanho da sua camisa e evidenciava seu cabelo encaracolado encharcado. Analisou cada partícula elétrica que rodeava a pirâmide, e se perguntou como um vodariano poderia evocar uma construção daquele porte.

Com um tamborilar duplo no coração, o cérebro do jovem desligou e ele desmaiou diante do cortejo tenebroso ao novo Vital.

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Um novo dia nublado se inicia, a chuva finalmente tornou-se cessante e o cinza claro do céu irradiava pelas brechas da janela do cômodo. Algum sacana esqueceu a cortina aberta, e o feixe de luz foi direto nos olhos do único que dormia nesse quarto.

Em um salto com o pesadelo projetado como um filme de terror, Lotus acorda no mais puro susto; não fazia ideia de onde estava. Encarou em volta para entender como foi parar ali, mas ficou sem respostas.

— Caramba… tudo isso foi um sonho? — Ele olhou para o braço enfaixado, que lhe concedeu uma resposta ao se envolver com água. — É… pelo jeito não. Como eu vim parar aqui?!

Lotus parecia mais uma múmia do que um Vital. Bandagens tornaram-se suas novas melhores amigas, e o soro que suas veias consumiam também. Entretanto, tinha muita aflição de agulhas, ainda mais quando elas furavam seus vasos sanguíneos. Então, sem se importar com o tratamento, retirou a ponta na dobra do braço.

— Agora sim… bem melhor! — falou.

Sentado em cima de um colchão onde a única coisa confortável eram as molas, ele agradecia por mais uma vez ter escapado da morte. Apesar da cama ser dura como pedra, qualquer mínimo conforto aconchegaria a sua alma.

Ao seu lado, havia uma estante branca que aparentava ter alguns séculos de idade. Acima dela, um relógio eletrônico descansava, programado para assustar aqueles que tinham o costume de acordar em um horário não convencional.

Lotus meneou a cabeça para trás e encontrou as horas, foi quando os questionamentos pairaram na sua cognição.

— Que isso… são 6 da manhã… Por que acordei tão cedo?! E desde quando que eu ‘tô aqui?!

Os dias em Voda possuíam uma duração de 26 horas, porém a quantidade de meses era igual a da Terra. O nascer do sol acontecia — geralmente — às 5 horas e meia da manhã, e o dia durava até as 7 horas da tarde.

Seu estômago resmungava em súplica por suprimento, o que obrigou o jovem a procurar por comida. No entanto, não havia nada no dormitório que fosse semelhante a uma geladeira — ou até um simples armário. O espaço de poucos metros quadrados fora arquitetado apenas para suportar poucos móveis ou eletrodomésticos.

As manoplas jaziam na mesa à esquerda da cama, que exalava sua nevasca de poeira e atacava a alergia do bombado. O teto mofado enaltecia o pouco cuidado que o dono do imóvel tinha com o ‘hospital’.

— Verdade, eu perdi todas as minhas coisas na queda do avião. Acho que não vou conseguir ver vídeos por um bom tempo…

O jovem tinha o costume de, assim que acordar, adentrar no universo das redes sociais. O modelo avançado da internet de Voda — conhecido como Sahnatnet — permitia com que o usuário entrasse com um corpo virtual em interações de uma postagem específica, para interagir ‘cara a cara’ com os sahnaternautas — internautas da Sahnatnet.

Sem opções do que fazer pela manhã, o bombado ansioso foi explorar o local em busca de respostas. Ao firmar os pés no chão de madeira, dores pontiagudas incomodaram diversos membros do corpo.

— Acho que excedi um pouco os meus limites. — Ele gemeu de angústia.

A cada passo que dava, o ruído de lenha podre arrepiava até o último átomo de braço. O solo úmido esfriava as solas dos pés, abandonados pelos sapatos imundos.

— Só espero que isso não caia igual aquele santuário… acho que não aguento mais uma queda.

Depois de mancar até a saída do cômodo, ele girou a maçaneta grudenta e abriu a porta com dificuldades. O atrito da dobradiça incinerava a sua audição, além de reverberar por todo corredor que vinha a seguir.

— Tem alguém saindo daquele quarto?! — perguntou uma enfermeira, enquanto guiava a maca para um aposento.

O extenso saguão era repleto de portas nas suas laterais, que davam acessos aos outros dormitórios. Acima do tapete vermelho que coloria o piso, diversas enfermeiras mantinham-se dispostas após uma longa noite de trabalho.

Iluminado pela lâmpada da cor do fogo, Lotus se separou do quarto cambaleando como um bêbado e imergiu os ombros nas pinturas descascadas das paredes, semelhantes a uma cobra trocando de pele. Sem hesitar, foi na direção das enfermeiras.

— Fala, galera!!! Vocês podem me ajudar? — questionou o bombado.

Aaaahgr! Um monstro!!! — Elas bramiram em uníssono.

Quando se depararam com o zumbi egípcio que perambulava pelo estabelecimento, a maioria adentrou direto para um quarto. No entanto, apenas uma ficou desprotegida da aberração e decidiu correr até a escada de espiral no final do caminho.

— Ei! Não tenha medo… eu não vou fazer nada com você!!! — falou Lotus, enquanto se aproximava lentamente.

Para o azar da mulher, o acesso aos degraus estava bloqueado por um homem repousado em uma maca.

— Sai!!! Sai daqui!!! Não faz nada comigo, seu monstro!!!

— Do que você ‘tá falando?! Eu pareço um monstro?!

De repente, as canelas do jovem foram trancafiadas por correntes de rocha, o que fez ele propulsar para frente.

— Por que você saiu do quarto, moleque?! — Vion se aproximava furiosa.

— Professora?! — Lotus a fitou de rabo de olho. — O que estou fazendo aqui?!

— O que você acha?! — respondeu. — Eu estava esperando você acordar ‘pra eu te chamar! Mas, não imaginava que ia levantar tão cedo… Enfim, suba ‘pra você se alimentar!

— Ah… beleza! — Ele se afastava cada vez mais de Vion após ela dar as costas. — Bom… você poderia me soltar?

— Ah! Me poupe, Lotus! Você é um Vital, caramba! Pode muito bem se soltar sozinho! — resmungou a arqueóloga.

— O quê?! — Os olhos da enfermeira saltaram. — Ele que é o Vital?! Por Chantico! Não nos mate, por favor!

— E por que eu faria isso?

— ‘Pra trás! — Com a cabeça para o lado, ela o ameaçava com o tripé que carregava o remédio do paciente.

— Que gente doida… — Lotus criou ventos cortantes e serrou as algemas em seus pés.

Assim que o jovem entrou no elevador junto com Vion, as mulheres aproveitaram para se livrarem das portas.

— Ele foi embora?! — Uma delas perguntou, apenas com a face na brecha.

— Sim… ele foi. — A corajosa que permaneceu no corredor ainda segurava a tripeça como se fosse um bastão.

— Menina… você é muito sem noção! Imagina só se ele estivesse em um dia ruim… o que acha que ia acontecer? — Uma outra saiu do quarto.

— Nem vem! Vocês que não me deixaram entrar no quarto! — respondeu.

— Você que é lerda demais! Isso sim! — zombaram todas as que sobraram.

Dentro do elevador, uma galáxia de dúvidas levitava no universo de Lotus. Entretanto, ele não teve medo de apagá-las.

— Professora… como eu vim parar aqui?

— Bom, digamos que um homem misterioso te tirou do mar e levou até mim, que estava procurando por você em todo qualquer canto.

— Como assim? Quem era ele?!

— Eu sei lá… ele era indígena como os outros, porém estava todo machucado. O peito dele parecia um balde de uva!

— Mas e o resto dos inimigos?! Ainda tinham mais navios e aviões atrás de mim!

— Parece difícil de acreditar… mas aquele homem foi seu escudo por todo o tempo que te carregou. ‘Pra ser sincera, eu nem sei como ele conseguiu chegar vivo até mim…

— Mas… como? Como ele aguentou todo aquele armamento?

— Eu não sei… Ah, e não foi só ele que contribuiu para que você saísse vivo dali! Eu consegui levar alguns deles… mas um outro homem também me ajudou, mesmo que de forma indireta.

— Outro homem? — O elevador desembarcou.

Os portões se abriram com um rangido metálico de dar arrepios. Contudo, assim que Lotus pisou no andar do refeitório do prédio…

— Lotus!!! — comemorou Flora, com buracos negros abaixo dos olhos. — Você está vivo!!!

Nice, dude!!! ‘Cê é very crazy, man! — Lauren disparou para dar um abraço no amigo.

— Isso que eu chamo de resiliência de um Vital… — murmurou Sagna.

— Pessoal…? — O susto envolveu o coração de Lotus, assim como a alegria.



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