Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 15: Procurado e Odiado

Guerrear sozinho não é nada fácil, ainda mais quando seus inimigos são canhões de plasma colossais. Após afundar os navios militares da Voquinity, o indígena considerado criminoso internacional nadou com o pouco fôlego que tinha até a praia próxima do Doom Stormbolt.

 Quando chegou na costa, tornou-se um aspirador de oxigênio enquanto mergulhava as mãos na areia. Suas duas pistolas descansavam no coldre tático atado na perna, sempre preparadas para atirar em razão dos princípios.

 O ar preencheu os pulmões trabalhadores, o que lhe deu disposição para se erguer diante do horizonte cinza escuro. Fitando a fumaça negra que se dissipava do oceano, deixou uma gargalhada escapar.

 — Parece que Raoni Tlaloc não é tão traidor assim… — disse.

 Seu nome ecoava no topo das listas dos marginais mais perigosos de Voda. Raoni Tlaloc, o Índio de Fogo, era conhecido por ser inventor das próprias armas adaptativas, as Paladinas Sedentas.

 Não havia tempo para repousar; um estrangeiro havia se tornado um Vital. Determinado, marcou a beira-mar com suas botas de combate, rumo à comunidade. O sobretudo sombrio dançava com a chuva enquanto estava amarrado em sua cintura, em contrapartida de sua regata das neves que permanecia intacta.

 No árduo caminho litorâneo, seu corpo não arcava com nenhuma das consequências do confronto. Entretanto, seus pensamentos foram colocados em um abismo profundo quando avistou um indivíduo jazido no deserto marítimo, banhado pela tormenta incessante.

 Atônito e totalmente contra o vento, disparou até o vodariano em questão.

 — Será que ele ‘tá vivo?!

 O homem estava de bruços no solo, a bigorna sobre sua alma aumentava o peso do clima das trevas. O casaco de moletom cor de musgo ocultava os machucados pontiagudos na pele, mas nunca o protegeu do sofrimento dos conflitos anteriores.

 Raoni colocou a mão debaixo dos ombros dele, e assim o levantou. Por coincidência, reconheceu o rosto do homem e imediatamente expulsou os olhos do corpo.

 — Galdino?! — indagou.

 — Raoni… — murmurou Galdino Taira, enquanto o gotejar purificava sua face dos grãos de areia.

 — O que você está fazendo aqui?!

 — Estou cumprindo as ordens de Amochiom.

 As írises rubras e incandescentes de Raoni miraram no peito devastado do Galdino. Incrédulo, o Índio de Fogo nem se tocou no restante dos hematomas que moravam no corpo do homem derrotado.

 — Cara, você precisa urgentemente de um hospital. — Raoni segurou nas dorsais de Galdino e começou a erguê-lo. — Eu te levo até lá!

 — Não! Espere… — Galdino tossia igual a um indivíduo resfriado. — Você precisa passar no Santuário de Tlaloc e pegar o Opúsculo da Tempestade…

 — E por que eu vou me importar com aquele livro idiota, logo agora?! — indagou Raoni, revoltado. — Você está quase morrendo!

 — Mas… você precisa entregá-lo para o jovem Vital… é o nosso dever!

 — Eu jamais entregaria ele ‘pra um Vital que não tem nosso sangue! A propósito… eu não posso deixar o garoto sair de La Esperanza!

 — É sua obrigação, Raoni… você pode até ter se tornado um foragido, mas nunca poderá fugir do seu passado.

 Raoni não deu ouvidos a Galdino e, quando menos percebeu, já estava carregando o fiel nas costas. Preparados para irem no sistema de saúde mais próximo, as palavras de Galdino invadiram as sinapses do índio armado e o paralisaram.

 — Ele salvou o Doom Stormbolt, Raoni…

 — O quê? — Ele sequer começou a andar.

 Como uma estátua, Raoni permaneceu firme no chão e milhões de dúvidas foram invocadas.

— Como assim ele ‘salvou’ o Doom Stormbolt?

— Ele impediu que os navios obliterassem nossa comunidade — A voz de Galdino vinha por trás. —, e então… ele desmaiou no mar.

— Ele ainda está lá?! — A pergunta automática não hesitou em fugir.

— Não… eu o retirei de lá com a força que me restava e entreguei ele a uma mulher

que parecia ser responsável por ele.

— Como é?! — Trovões rugiam no céu negro. — Por que fez isso?!

— Porque Amochiom o escolheu. E eu entrego minha vida pela vontade do meu

criador…

 — Mesmo assim, ele não é um dos nossos!

 — Não importa, Raoni. Ele é o Vital da Tempestade. Além do mais… eu não enxergo maldade naquele jovem. Ele terá de arcar com as consequências do destino que ele escolheu.

 Raoni bloqueou o fluxo de palavras que liberava. “Eu não posso dar esse livro para esse novo Vital. Mas, Galdino vai dar o sangue até eu fazer isso…”, refletiu.

 — Escute… me deixa com os curandeiros da nossa vila… eles sabem o que vão fazer. Vou ficar um século na fila para ser atendido no hospital…

 — Está tudo destruído, Galdino.

 — Mas nosso povo não está extinto. Por favor… me leve lá e cumpra seu dever.

 Raoni se sentiu obrigado a ceder, sabia que a casa de saúde do seu país estava sucateada. Apesar de não confiar em curandeiros, a pressão da falta de opção o fez considerar um voto de confiança.

 Seguiu para a rua que dava acesso às vielas da comunidade. Nas extremidades do perímetro, as residências exalavam um estado medíocre, porém não estavam destroçadas. Durante o tempo que Raoni exerceu sua presença lá dentro, os habitantes ao redor o torturavam com os olhos.

 — Algumas coisas não mudam… — Ele fitava de lateral em lateral.

 Embora tivesse fortalecido a mente para não se importar com os julgamentos, às vezes não conseguia evitar as pontadas no coração. Afinal, nasceu e cresceu nesse lugar e, um dia, já foi louvado por todos.

 Nunca se esqueceu das peculiaridades da sua terra natal, saltou todas as subidas íngremes até chegar no oratório devastado. Entretanto, repudiou os rastros de destruição que horrorizavam o pobre local. Quanto mais avançava, o volume dos entulhos e pinturas de sangue aumentava drasticamente.

 — Parece que o garoto realmente queria salvar nosso lar — ironizou.

 A medida que encontrava seus iguais, era recepcionado pelas mais puras proliferações de ódio e vingança.

 — Seu traidor! — bradou um residente.

 — Você nos abandonou! — A mulher protegia uma criança.

 — Aqui não é seu lugar! Vai embora! — Um homem reerguia um pedaço de madeira para retirar um residente preso.

 Raoni meneava a face a cada insulto, como se ninguém tivesse dito nada. Entendia o porquê da fúria em conjunto, e também nunca os renegou por isso.

 — Não os ouça, filho. Continue no seu caminho. — Galdino tentou ajudar, por mais que também não concordasse com as atitudes do índio.

 — Estou acostumado já, Taira.

 Assim que chegou na última elevação, avistou os médicos sem licença realizando seus trabalhos voluntários a céu aberto com uma tempestade. Alguns estocavam a cachoeira escarlate que vazava da barriga dos feridos; e outros desaguavam xaropes de erva no esôfago dos pacientes.

 — Me deixe nas mãos de qualquer um deles — pediu Galdino. —, e vai atrás do opúsculo.

 — Ainda está no mesmo lugar?

 — Nunca saiu de lá.

 Então, Raoni segurou nas dobras das pernas e nas costas de Galdino para entregá-lo aos enfermeiros. Como de praxe, foi atacado pelas encaradas do povo que estava ali.

 — O único Tlaloc que não presta. — Um curandeiro o injuriou.

Ignorou o homem que propagou a frase e foi direto pular para chegar no santuário. Seu curto dread preso para trás absorvia toda a água que o inundava, porém o elástico que o segurava estava quase se desfazendo.

Ao pisar na viela do santuário, visualizou vários soldados enterrados no chão. Alguns deles ainda gemiam de dor, contudo Raoni atravessou o espaço como se só fantasmas habitassem nele.

No entanto, um dos guerreiros o reconheceu.

— Tlaloc!!! — Ele tentava se desenterrar. — Se me ajudar a sair daqui, eu te tiro da

lista de procurados da Vo… — O estrondo de um tiro de uma das Paladinas Sedentas não deixou ele terminar de falar.

 Raoni ejetou uma bala rochosa a centímetros da cabeça do combatente e perfurou o solo.

 — Se afogue em silêncio — disse.

 Em seguida, manteve os passos até o santuário aniquilado. A figura do deus asteca na entrada fora repartida em centenas de pedaços; e todo o estabelecimento se tornou um aterro sanitário.

 Entretanto, as estátuas dos antigos Vitais da Tempestade estavam quase perfeitas, como se tivessem recebido um polimento. O material presente nelas era tão resistente quanto o diamante.

 Ele foi até a lateral esquerda, na escultura de Mariana Tlaloc, a Sereia Esmeralda. Percorreu sem remorso por cima dos restos de um local sagrado e se aprontou para movimentar o monumento.

 — Ah, velhote… espero que você não tenha mudado o esconderijo.

 Com toda veemência, abriu os braços, abraçou a figuração e a movimentou para a direita. O atrito entre a base e a superfície áspera tornou a tarefa ainda mais difícil, todavia nada impossível para ele.

O suor se misturou com o fluir da chuva, e o corpo clamou por trégua igual em um descanso entre as séries de um exercício. Entretanto, a labuta estava feita.

— A passagem ainda está aqui… isso é um bom sinal — bafejou.

Um quadrilátero secreto abrigava uma longa escadaria, que encaminhava para o subsolo intocado do templo. O fundo era semelhante a um buraco, guiava para um breu infinito.

Sem temer a escuridão, desceu os degraus até onde eles pudessem o levar.

— Esse lugar continua com o fedor de poeira… — Ele tampou o nariz.

A tempestade invadia o ambiente umbroso, encharcando as costas do homem e misturando o odor da tormenta com o cheiro de pó, o que aliviou o duro caminho até o solo plano.

Conforme arriava, pequenos trovões atingiam as tochas que ficavam nas paredes, irradiando o ambiente com uma luz de vela. Nessas laterais, haviam hieróglifos. A maioria deles evidenciava pessoas glorificando de joelhos supostos Vitais da Tempestade.

Raoni não se importou com as representações, já havia visto elas algumas vezes. Para ele, isso nada mais era do que a ambição natural dos Vitais: ser soberano perante a população de Voda.

— Esses desenhos estão caindo aos pedaços… devem ter alguns séculos de idade.

Dirigiu-se por um imenso lance de escadas, o que resultou em uma leve fisgada nas panturrilhas. Após passar pelo último degrau e pisotear um corredor estreito, foi resplandecido por um espetáculo de segundos.

Linhas de relâmpagos na quina do teto possibilitaram a passagem de um raio na velocidade da luz e, em um piscar de olhos, todas as tochas do saguão arderam com chamas encantadoras.

— Pelo jeito, fizeram algumas manutenções aqui. — Ele olhava para as paredes.

Nos confins, um grimório magro hibernava em um púlpito de madeira, havia décadas que alguém ousou abrí-lo. Ademais, a última parede possuía um furo circular em seu centro, o que estranhou Raoni. “Esse lugar não era para ser perfeito?”, refletiu.

Entretanto, o Índio de Fogo percebeu que mais modificações tinham sido realizadas. As ilustrações nas laterais dispunham de um aroma de tinta fresca, e as gravuras antigas haviam sido sobrepostas por pinturas novas e… tenebrosas.

— Mudaram até os hieróglifos? — indagou.

Enquanto vagueava até o livro, reparou no desenho à esquerda. Um presumível homem, com cabelo liso e três rabos de cavalo, apontava seu cajado na direção de um trio de magos lado a lado, que representavam os elementos cruciais para a composição de Voda: as águas, os ventos e os trovões; as plantas, a terra e os insetos; o magma, os minérios e as rochas.

Na frente de cada um deles, um comprido retângulo retratava o uso de seus poderes. No topo, uma tempestade escaldante despencava dos céus, lavando uma floresta cheia de vida. Porém, a água não chegava nas pedras abaixo do solo, que protegiam variados tipos de minerais quase encostando em um mar de lava.

— O que esse desenho ‘tá querendo dizer? — indagou. — Que os Vitais criaram o mundo? Mas, e aquele cara lá atrás?

Depois, analisou a segunda imagem à direita. Dezenas de vodarianos abatidos estavam em fileira com uma mão estendida. Na palma dela, havia uma orbe violeta prestes a ser concedida para um indivíduo com um cabelo de três rabos de cavalo.

— Quem é esse cara?! Por que ele está em dois desenhos de um lugar sagrado?

No final da estampa, uma outra figura estava parada observando a fila. Ela vestia um sobretudo branco e permanecia com os dois braços para trás. Raoni creu que esse hieróglifo atual era ainda mais assustador que o outro.

— Cara… eu vou retornar aqui para estudar isso. Mas, antes eu preciso pegar aquele livro.

Jamais tinha comparecido tão perto de figurações como tais, e isso lhe despertava uma grande curiosidade. Além de experiente em combate, Raoni era extremamente inteligente e, sozinho, já construiu equipamentos sofisticados para combate ou para investigação. Entretanto, para o azar dele, estava apenas com os utensílios de batalha.

Depois de examinar as aberrações reproduzidas, Raoni foi cumprir o objetivo imposto por Galdino. Ao regressar próximo do púlpito, avistou que o abertura esférica na parede estava localizada no peitoral esquerdo de um sujeito desenhado e, para sua surpresa, a figura também tinha três rabos de cavalo.

— Terceiro desenho… eu me sinto obrigado a voltar aqui.

Por fim, apanhou o pequeno grimório e o colocou debaixo do braço. Ele possuía uma capa preta com um título bem aparente; e era fino igual um barbante.

               Opúsculo da Tempestade

            Iniciado por: Mariana Tlaloc

             Encerrado por: Rudá Tlaloc

— Bom… eu não vou dar esse livro ‘pra aquele moleque. — Ele começou a voltar. — Eu não sei qual foi o motivo do meu pai ter dado a Pirâmide Vital da Tempestade para ele. Eu quero descobrir com os meus próprios olhos.

Sem fraquejar, Raoni deu passos vigorosos para retornar a superfície do Santuário de Tlaloc.

— Portanto… eu mesmo vou encontrá-lo.



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