Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 16: Notícia Globalizada

— Lotus, para de ser imprudente! — Flora tentava alcançar Lotus nas escadas de emergência do hospital.

— Eu vou mostrar ‘pra eles que não sou mau! — disse Lotus.

Brados e marchados ecoavam pelas ruas próximas ao estabelecimento, em plena oito da manhã. Lotus saiu em busca deles direto pelos degraus sombrios do local sem energia; e Flora tentou impedí-lo de ser impulsivo.

Como um animal enfurecido, o jovem deu uma investida poderosa na porta metálica que o separava do saguão principal. O ombro cebola submergiu na placa de aço, o que causou o fim do portão da saída de emergência.

— Você não vai resolver nada assim! — vociferou Flora.

— Não custa tentar! — Lotus disparou para a entrada do prédio.

A recepção desse lugar mascarava o pouco cuidado com os quartos dos enfermos. O aroma cativante de um perfume caro misturado com um chão de mármore moderno, relembrava o vestíbulo de um hotel cinco estrelas. Lotus cruzou o espaço sem perceber a aconchegante triagem dos pacientes, que era igual uma plateia de um belíssimo espetáculo de frente a uma mesa repleta de atendentes. 

O atrito entre os pés e o solo gélido era tão liso quanto o bolso de um gastador, o que nem contribuiu para sujar ainda mais as solas do jovem. Os indivíduos que esperavam um atendimento ficaram perplexos com o Vital correndo; os pais envolveram o filhos em seus braços, para protegê-los.

Seguranças de terno e gravata trancafiaram os portões de vidro e, também, utilizavam-os como escudo para se defender das vaias da população.

— Eles não param de avançar! — Um deles bramiu.

Tomatuxos — espécie de tomate com pelos —, pedregulhos e lascas de tijolo eram arremessados por catapultas de carne e osso, o que perfurou as janelas das laterais do hospital, quase esmagando os adoecidos.

— Quanta raiva… — Lotus se assustava com os lançamentos.

Quando desembarcou na segregação entre o edifício e as ruas, os guardas interromperam o deslocamento do jovem, ao tampar a passagem com o braço volumoso diante do bombado e reverberarem para ele.

— Você não pode sair! Eles vão te moer vivo!

— Eles estão procurando pelo Vital que está no prédio! — O colega de trabalho completou.

— Eles estão me procurando! — Lotus envolveu os ombros até as mãos com água, e sua presença expeliu ventos radiantes.

— O quê…?! — Ambos vigilantes ficaram atônitos.

— Olha ele ali!!! — O jovem que fazia a linha de frente da manifestação alertou com um tom de recuo. — Vamos nos afastar ‘pra nos protegermos desse opressor!

De repente, do lado de fora, os protestantes retrocederam levemente para ficar em uma distância estratégica para um possível encontro com o Vital da Tempestade. No entanto, camburões haviam chegado para controlar a situação com uma tropa de choque, o que levantou uma certa esperança em Lotus para conversar.

— Faça o que quiser, Vital. Não irei te impedir de nada.

— Então é por sua causa que tudo isso está acontecendo…

As duas égides de roupas elegantes cederam, apesar do repúdio contra a figura de

Lotus Sutol. O da direita temia pela sua vida, enquanto o da esquerda rangia os dentes em razão do ódio ao que o jovem representava.

Com remorso, liberaram o acesso, retirando a barreira que abafava o som dos grunhidos dos vodarianos, que invadiram os tímpanos de Lotus, o que não o amedrontou de forma alguma.

Lotus caminhou de punhos fechados até o povo. A expressão em sua face refletia o empoderamento de um homem em busca de mostrar o seu lado, não iria abaixar a cabeça perante o perigo.

Assim que pisou para fora, teve uma surpresa nada agradável.

— Como é que é? — Ele arqueou as sobrancelhas.

À sua frente, policiais permaneciam firmes de joelhos com um escudo que aguentaria até a mais robusta explosão. O problema é que a defesa era justamente contra o próprio Lotus, que fitava incrédulo dentro de um vão retângular aberto pelos militantes.

— Seu tirano!!!

— Pare de nos matar! Para de aniquilar nosso povo!!!

— Vocês, Vitais, não deveriam existir!

O grande grupo de manifestantes era dividido entre estudantes, adultos e idosos, com um forte senso de paladinos da justiça. Embora fossem cautelosos em relação à proximidade do jovem, eles não hesitaram em jogar as comidas e os objetos que estavam em suas mãos.

— Parem! — Lotus partia os projéteis com o curto movimento cortante.

A angústia começou a espetar o coração do jovem, nunca foi tão humilhado dessa forma. Um zumbido surgia gradativamente dentro dos ouvidos; os dedos tremeram como os de um garoto tímido no primeiro encontro; e o estômago expulsava a fome para receber o embrulho da dor.

Todavia, mesmo com o nervosismo absoluto, Lotus não tinha sangue de barata e retrucou afobado.

— Calem a boca!!! — bravejou Lotus.

O céu rugiu com relâmpagos estrondosos, o que motivou os policiais a posicionarem o escudo acima da cabeça. No entanto, o jovem não tinha a intenção de obliterar os que se opuseram à sua existência.

— Vocês estão equivocados! — continuou. — Eu não estou aqui ‘pra ferir vocês! Eu quero melhorar a situação de Voda com esse poder. Eu quero fazer a diferença!

— Não! — Um homem com aparência de universitário respondeu. — Você é um autocrata assim como todos os outros. Sempre irá contribuir para os crimes contra a vodarianidade! O seu fim é a nossa vitória!

O gatilho para um grito de guerra de centenas de vodarianos foi ativado e, em seguida, uma ópera horripilante para o jovem reverberou por toda a cidade. “Essa é a consequência da minha escolha?”, pensou.

Como em um sistema de jogo ‘battle royale’, o cerco começou a se fechar para Lotus. A tropa de choque sacou a suas armas, mesmo que tivessem recebido ordens para não atirar; e a multidão cantarolou.

— Ô Vital! ‘Pra nossa espécie sua existência é letal!

O jovem deu curtos passos para trás. Sua vontade era varrer essas pessoas do mapa, porém sabia que utilizar um artefato ancestral dessa forma era inquestionavelmente errado. Sua missão era melhorar o mundo, e não assassinar seus iguais. Entretanto, o coletivo se aproveitou dessa ocasião para intimidar o recente Vital.

Atordoado pelas frases que escutara, Lotus ficou totalmente vulnerável aos ataques dos manifestantes. O peito estava esmagado pela prensa hidráulica da raiva; e a pele formigava com a amargura pontiaguda.

Bandeiras e machados foram alçados, simbolizando a resistência de uma população que tomou as dores de seus antepassados. Em um ato de covardia, o estudante líder da mobilização deu o aval para um dos seguranças do hospital atirar.

— Agora!!!

O revólver já almejava o crânio de Lotus, bastava ejetar a bala de fogo que seria o final da jornada. Porém, o jovem nunca esteve sozinho.

— Hoje não!!! — Sagna estava no hall principal, com uma mão aberta diante do seu corpo.

O antebraço do arqueólogo esfriou com a dança de um dragão chinês, e depois ejetou-o direto no braço do guarda, que desferiu uma mordida feroz para paralisar temporariamente o membro do corpo.

Mas, Lotus ainda não havia escapado de todos os problemas, os militares estavam preparados para fuzilá-lo. A despeito de que estivesse desnorteado pelos insultos que esfaqueava a sua alma, não podia abaixar a guarda. 

Então, imponente como um tufão, respondeu os ataques com uma rajada vento poderosa, similar às repulsões de Jules. O efeito esperado não ocorreu, que era mandar as autoridades pelos ares. A proteção vigorosa aguentou o impacto. No entanto, conseguiu ganhar tempo ao desviar o foco das metralhadoras, o que permitiu com que Vion tivesse chance de agir.

— Sumam!!! — Ao lado de Sagna, ela imergiu as duas mãos na superfície para criar uma fissura, que percorreu até a divisória entre Lotus e os protestantes.

De súbito, um muro de pedra, veemente igual uma montanha, foi erguido para desagregar dois lados de pensamentos diferentes e isolou o jovem. Os fuzis até rogaram para derrubar a muralha, porém não obtiveram sucesso.

Lotus prostrou de joelhos, ofegante. Já havia manuseado a Pirâmide Vital da Tempestade duas vezes no dia. Acostumava o corpo aos poucos, ampliando seu estoque de prana a cada uso. Mas, tinha de correr contra a linha temporal para estar disposto a enfrentar qualquer inimigo.

— Droga!!! — Um dos integrantes importantes da passeata chutou a parede rochosa. — Esses cretinos ainda entupiram a porta do hospital com pedra! Como é que os mais carentes vão tratar de suas doenças agora?

Atrás deles, uma enorme fileira de carros buzinava para deixarem a via. Inclusive as ambulâncias. A cidade tinha outras rotas para o sistema de saúde, embora consumissem alguns minutos a mais.

Do outro lado do muro, Vion pisoteava o mármore revoltada com seu aluno. A energia havia retornado, e a luz das lâmpadas fluorescentes irradiaram a chaminé furiosa do crânio dela.

— Você vai se ver comigo, moleque! — bradou.

— Pega leve com ele, Vion. — Sagna tentou acalmá-la.

— Não me enche, careca!

Ela cruzou o caminho da dupla de guardas como se não existissem, só a aura da sua fúria era o suficiente para espantá-los. Assim que alcançou Lotus, levantou-o pela orelha, semelhante ao jeito que a mãe dele dava as broncas.

— Qual é o seu problema?! — Sua face tornara-se o mais puro terror. — O que achou que ia acontecer? Que eles iam te receber com flores e chocolates?!

— Só queria… — Ele intercalava as palavras com gemidos de dor. — provar ‘pra eles… que eu não represento a imagem que eles criaram dos Vitais…

— Você não tem que se provar ‘pra ninguém além de si mesmo, Lotus!!! Era óbvio que eles iam querer te matar, mesmo você sendo um Vital! — A professora soltou o ouvido do jovem ao tatuá-lo com a digital do seu polegar.

No embalo da tração do puxão, Lotus realçou cambaleando para trás. Meneou a cabeça para o paredão que o resguardou daqueles que quase o executaram. “Eu me deixei ser levado pelos sentimentos. Como eu fui tolo…”.

Vion e Lotus retornaram para o prédio novamente eletrizado. Flora o esperava próxima de Sagna, os traumas com protestos seguidos de poder bélico a enraizaram no chão macio. A vida inteira teve que lidar com isso, muitas vezes da pior forma.

Ter visto seu amigo voltando são e salvo da cena de terror foi aliviante, apesar do semblante depressivo dele.

Subitamente, a televisão que ficava no topo de um pilar no centro do hospital, acendeu depois de captar sinal. Estava no jornal da manhã de Cucaplaya, a cidade que englobava o Doom Stormbolt, as praias chuvosas e diversos estabelecimentos. No programa, uma notícia chamou a atenção de Flora.

— Lotus!!! — chamou. — Olha a televisão!

O jovem reverteu o estado cabisbaixo e subiu o queixo para averiguar.

— E hoje, Cucaplaya amanhece com uma notícia muito importante. Após 93 anos, Rudá Tlaloc deixa este mundo com o título de ‘Vital mais Injustiçado’, passando o posto de Vital da Tempestade para um jovem conhecido como Lotus Sutol. — começou a repórter.

— O quê? — espantou Lotus.

Todos os indivíduos presentes na recepção acorrentaram suas visões no jornal.

— O garoto não é um nativo de La Esperanza, e isso provocou muita curiosidade nos arqueólogos em qual foi a motivação do antigo Vital para realizar tal ação — continuou. — A informação já atingiu todos os continentes de Voda. Inúmeros grupos anti-Vitais já começaram a se mobilizar nas ruas, clamando pelo fim do ciclo das Pirâmides Vitais.

Enquanto a jornalista falava, os vodarianos que aguardavam o atendimento se alarmaram com Lotus, fitando-o com olhos horripilantes. Em instantes, a maioria se retirou do centro de cura sem olhar para trás.

Lauren finalmente desceu as escadas, seu fôlego não era dos melhores. Porém, sua agitação era de um adolescente entusiasmado. Assim que passou pela porta derrubada, deu de cara com a cena na televisão.

No way… my brother is on TV!

— Espalhou muito rápido… — Vion expulsava os globos oculares do rosto.

— Todo San Garch já deve estar sabendo… — murmurou Flora.

— Meu aluno está famoso — disse Sagna.

Os batimentos de Lotus tornaram-se explosivos. Uma bigorna afundou o seu espírito.

— Agora… o mundo inteiro… me conhece. — Ele inspirava e expirava como nunca.



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