Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 18: O Confronto no Hospital I

Face a face com a orbe trovejante que engolia sua visão, Lotus se sufocava com a sola tratorada da bota de Raoni. A pistola o encarava com um ódio ardente, prestes a obliterar até o último resquício das suas cinzas.

Lauren até tentou se tornar o herói do dia, disparando na direção de Raoni para realizar um golpe corporal apenas com sua força física deplorável. Entretanto, o olhar atroz da Paladina Sedenta resgatou o sentimento que possibilitou a evolução da espécie vodariana: o medo.

— Fica paradinho aí! — Raoni mirou em Lauren.

Intimidado pelo canhão ambicioso, o melhor amigo de Lotus fincou os pés no tapete escarlate do saguão, igual uma raiz de sequoia. Atrás dele, Flora se protegia com uma barreira de carne e osso que tremia tanto quanto uma cidade em terremoto.

O coração do jovem Vital foi esmagado pelas correntes do desespero, a rigidez no peitoral afundava as costelas de cálcio puro. Sua única opção era ranger os dentes, a inexperiência em manusear um poder supremo o destinou a assistir a própria incineração.

O estoque de prana das pistolas de Raoni havia ultrapassado seu limite, elas transbordavam a energia da Pirâmide Vital da Tempestade. Toda tentativa de ataque de Lotus resultou apenas em mais força para o poder bélico do inimigo de alta prioridade da Voquinity.

— Vamos ver se você aguenta isso! — bradou Raoni, e logo em seguida puxou o gatilho para liberar os trovões que banhavam seu acessório.

— Não!!! — vociferou Lauren.

— Lotus!!! — Flora se defendeu com o antebraço adiante do seu rosto.

Como um laser devastador de planetas, o projétil branco da Paladina Sedenta rasgou a atmosfera local, sumindo com as pupilas de todos que fitassem o horripilante show de luzes. A princípio, não sobraria um átomo sequer do crânio de Lotus. No entanto, o jovem Vital não podia ser subestimado em nenhuma hipótese.

— Não acredito… — surpreendeu Raoni.

— O quê?! — Ao espiar discretamente, Flora se assustou com a consequência do tiro.

Iluminado igual as nuvens negras irradiadas por relâmpagos, o raio do Raoni foi absorvido por um redemoinho formado sobre o peito esquerdo de Lotus, semelhante a um vórtex gerado no vasto oceano.

A melodia de cachoeira cantada pela aspiração da Pirâmide Vital da Tempestade era estrondosa e, junto aos rugidos dos trovões, aterrorizavam o cenário com uma ópera de guerra nos mares.

— Então ele pode absorver o próprio poder — disse Raoni —, o que significa que ele é absolutamente imune aos trovões… Terei de usar outro tipo de munição ‘pra bater de frente.

A eletricidade fluía nas veias de Lotus; o prana escaldante lavou sua alma do cansaço excedente e da angústia intensa; e as cognições desviaram da rota do susto da repercussão global. A sede de soberania tornou-se insaciável.

Em nome da sua bravura, o jovem roga aos montes até sua voz ser aplaudida pelos estratos mais profundos de Voda.

— Eu sou a própria tempestade!!!

Ambos os amigos de Lotus não mais o reconheciam, ele se transformou no céu sombrio, prestes a castigar os malfeitores.

Com um movimento abrupto, Raoni impulsiona a bota no pescoço de Lotus para se jogar ao lado, esquivando do ataque e rolando taticamente pela superfície. Sua habilidade em combate era tamanha a ponto de até comandantes de exércitos crerem que ele nasceu para guerrear.

— Esse moleque vai explodir o prédio!

Os músculos de Lotus transvasavam a punição de Amochiom, e essa energia precisava irromper deles. Então, com um último bramido, Lotus bateu palma e dispersou toda tormenta guardada dentro de si.

KABOOM

A explosão elétrica perfurou os tímpanos dos vodarianos presentes no hospital; e a consequência do ataque pôde ser repudiada pelos cidadãos de Cucaplaya.

Maior parte da energia que enaltecia Lotus foi dissipada nesse desfecho, o que deixou-o ofegante como um ator que acabou de fazer uma cena intensa. Ele não mediu tal ação que realizara, uma vez que a visão turva proveniente do golpe mascarou o estrago resultante.

Além do ofuscamento, o zumbido irritante também penetrou nas orelhas de Raoni, Lauren e Flora. Apesar dos efeitos colaterais terem reduzido a atenção deles, Raoni nunca abaixou a guarda em um confronto.

— Esse idiota gastou quase toda energia em um único golpe — zombou Raoni. — Ele é realmente um novato…

A obscuridade finalmente foi clareada, embora as mentes não tenham conseguido digerir a cena. Quando foi possível averiguar as sequelas tempestuosas de Lotus, os três jovens ficaram de boca aberta.

— Caramba… — murmuraram em uníssono.

Um vão foi aberto no quarto do bombado, expondo o céu nublado e permitindo que o clima úmido tocasse as peles lisas. Todo pedaço de madeira e mofo devorando o teto foram desintegrados pela justiça de Lotus Sutol.

Berros das enfermeiras escondidas nos dormitórios foram de quebrar os vidros; súplicas de socorro dos pacientes lembraram o desespero de um indivíduo em apuros; e o tremor no prédio foi suficiente para entenderem que o hospital estava sendo abandonado.

As paredes dos alojamentos vizinhos dissolveram-se com o incêndio elétrico, e todos os móveis que nelas se apoiavam mergulharam nos andares abaixo.

— Eu… fiz isso?! — Lotus ficou atônito.

Para a sorte de Raoni, um fragmento de tijolo pousou próximo a ele. Aproveitando a ocasião para criar uma nova munição, ele o apanhou e o colocou no buraco presente no pente das Paladinas Sedentas. A esfera de puro prana girou e, assim, moldou as balas de tijolo.

Lotus estava inconformado que tinha extinguido o cômodo que uma vez repousou. Mais uma vez, ficou abalado por não ter pensado no que poderia acontecer com esse poder em suas mãos. Os flashbacks das cenas visualizadas com os próprios olhos vieram à tona e esfaquearam seu espírito. Ele precisava expelir isso.

A mistura da própria ansiedade agonizante com a capacidade divina o metamorfoseou no homem mais furioso do edifício, impondo toda a culpa no Raoni.

— Seu desgraçado!!! — Lotus o amaldiçoou com as írises.

— Pode vir, Vital! — Raoni sorriu maldosamente.

A água começou a envolver o corpo do jovem Vital, como os anéis de Saturno. Por mais que fosse ignorante no uso da Pirâmide Vital da Tempestade, ele ainda confiava no seu instinto feroz.

Erguendo-se na velocidade da luz como um carateca, ele partiu pra cima de Raoni sem olhar para trás. A órbita marítima expandiu a sua largura, mas de forma alguma amedrontou seu adversário.

Raoni desbravou um mortal para trás para se posicionar melhor, voando por cima de Lotus. No ar, ejetou os projéteis de tijolo na cabeça do seu oponente, porém o jovem se defendeu — apesar da intenção ter sido atacar — da bravura de Raoni criando ondas a partir da água que o circulava.

Ao aterrissar em um salto bem sucedido, Raoni almejou finalizar a luta amontoando Lotus nos tijolos, como se fosse construir uma casa. Cravou as Paladinas Sedentas na direção dele e, sem enrolação, iniciou fogo.

Todavia, Lotus não estava desatento, seus reflexos aprimorados pela Pirâmide Vital da Tempestade o permitiu ter uma reação imediata ao mesmo tempo que alertava Lauren e Flora.

— Vocês dois!!! Grudem nas paredes! — apregoou.

Igual chicletes no estômago, os dois companheiros colaram na parede para desviar do canhão hidráulico que foi impelido pelo Vital da Tempestade.

A rajada de água alimentou-se das balas rebocadas, como se fossem meros doces. Ela ocupava quase toda a largura do saguão, o que não deu espaço para o Raoni conseguir esquivar.

Em um piscar de olhos, o rival de Lotus foi lançado contra o elevador, socando o botão de chamá-lo. Suas costas abraçaram implacavelmente a porta metálica, causando um certo incômodo na coluna. Mas, poderia ter sido pior caso Raoni não tivesse amortecido o impacto absorvendo a potência com as Paladinas Sedentas.

Por mais veemente que tivesse sido o choque, Raoni não prostrou diante do Vital. Antes de retornar a troca de golpes com Lotus, ele se pôs no pedestal para dar ordens a Flora e Lauren.

— Vocês dois! Saiam daqui agora! — Os portões da caixa de ferro abriram.

A dupla de universitários sabia que, permanecendo nesse local, mais atrapalhariam do que ajudariam. Então, seguindo as ordens do desconhecido, pegaram carona até outro andar.

Em seguida, Raoni correu rumo ao jovem, posicionando os revólveres adiante do seu corpo. 

O campo de batalha ficou livre de vodarianos — com exceção dos que estavam trancafiados nos quartos. Raoni e Lotus obtiveram a liberdade de se enfrentarem sem se preocupar com quem exercia a presença ao redor.

Lotus não temeu em nenhum segundo, manteve a postura e continuou expelindo as águas Vitais. Entretanto, errava a maioria dos golpes, pois Raoni meneava de forma dinâmica, algo que só alguém com preparo conseguiria executar.

— Vamos deixar isso mais divertido, Vital! — De ponta cabeça, guardou as armas no coldre e decidiu guerrear com as próprias mãos.

Raoni tinha uma carta na manga, utilizava-a só em situações críticas. No entanto, nessa batalha ele quis fazer diferente: testar o utensílio que nomeou de ‘Pirâmide Artificial do Fogo’ contra Lotus, para ver se sua invenção estava funcionando corretamente.

Raoni cerrou os olhos e, emanando as chamas da sua vigorosidade, contornou o corpo com um exoesqueleto incendiado por brasas incessantes. Subitamente, pressionou o teto com as solas vulcânicas e despencou como um meteoro.

Lotus o fitou e criou uma cúpula de água para servir de égide, com base na sua imaginação. No entanto, o tempo de resposta não foi suficiente para lidar com a pancada flamejante do Raoni.

— ‘Vamo bora, Vital! — Raoni perfurou a proteção de Lotus e submergiu a bochecha Vital em seu punho destemido.

O jovem foi ejetado no corredor até dobrar as costas nas escadas, onde afligiu com uma dor insuportável. Raoni não disponibilizou segundos para ele respirar, e logo em seguida o metralhou com uma erupção de porradas.

— Você é patético, moleque!

Os ataques de Raoni irradiavam como tochas, banhando-o em uma tempestade de lava. Entretanto, a cada golpe que desferia, sua pele queimava como encostar o dedo em uma frigideira em alta temperatura.

“Por que do nada ele ficou tão poderoso?!”, remoeu Lotus.

Os atributos de força e resistência do Raoni se elevaram drasticamente, equiparando-o à robustez de um Vital.

Lotus tentou revidar de inúmeras formas, porém não obteve sucesso. Sua incapacidade em gerar uma variedade de golpes o tornava limitado, só conseguia manejar a águas. Ventos, eletricidade, furacões, trovões… sempre foram alternativas momentâneas e de alto custo da sua vivacidade.

A desvantagem era a única coisa que Lotus enxergava no embate, e o padecimento era o único caminho para seu físico. Hematomas e queimaduras acometeram-se no corpo definido como se já viessem no nascimento.

O resultado do confronto estava nítido, o jovem não aguentava mais. Sequer pensou em ativar o Heart Discharge, o poder que nadava de braçada pelo seu sangue camuflou as suas qualidades. Mais uma vez, golpeou como nunca e apanhou como sempre.

— Que vergonha você ter se tornado o novo Vital. — Raoni cessava lentamente os socos.

Prestes a valar Lotus com o ultimato dos murros, grilhões de pedra encarceraram o braço de Raoni e o impediram de terminar o que começou.

— O quê?! — Raoni olhou para o braço preso.

De repente, duas najas cor de esmeralda morderam o pescoço vascularizado de Raoni, introduzindo um veneno que neutralizaria o poder da Pirâmide Artificial do Fogo e usurpasse o poder físico.

— Lotus!!! — Os professores clamaram em uníssono.

Como uma luz no fim do túnel, Sagna e Vion desceram velozmente pelas escadas para interferir na guerra entre dois homens. Preparada com seu arsenal de rochas, Vion era como uma caverna; envolvido por energia verde clara, Sagna era o pesadelo daqueles que dependiam exclusivamente de magias elementais.

— Raoni Tlaloc… que surpresa você se importar com isso — falou Sagna.

Ambos arqueólogos estavam cientes da reputação de Raoni, por isso jamais iriam despreparados para confrontá-lo. Lotus, Raoni, Vion e Sagna estavam prestes a fazer um espetáculo em La Esperanza.

— Reposicione-se, Lotus! — ordenou Vion.

— Acho que nós três podemos dar conta. — Sagna sorriu.

— Desvantagem numérica nunca foi um problema ‘pra mim — Raoni encarou-os de rabo de olho, abrindo um sorriso de canto. —, Arqueólogos de Aralquia!



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