Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 19: O Confronto no Hospital II

Quantidade não é superioridade.

O índio de fogo incendiava seu semblante com as chamas da empolgação, mas congelava sua intuição com o frio da observação e cautela. O intermédio entre o fogo e o gelo moldava um homem temido por nações.

Algemas de rocha nunca foram suficientes para encarcerá-lo, muito menos répteis peçonhentos. O único cujo poderia ter uma chance, não tinha ciência do tamanho poder que carregava. A vantagem jamais esteve com o trio de sangarchianos — habitantes de San Garch.

— Parece que minha invenção é realmente útil, não é arqueológa? — debochou Raoni.

Ágil igual a uma serpente em seu bote, Raoni sacou sua arma no coldre e desferiu um tiro de tijolo na corrente de pedra que envolvia seu punho, de maneira com que os destroços fossem ejetados até o pente das Paladinas Sedentas.

Em um piscar de olhos, as balas feitas a partir do poder de Vion rasgaram a atmosfera em busca da cabeça dos professores. O sobretudo preto de Raoni dançou no ritmo do disparo, exaltando a imagem de um caçador perspicaz.

Do outro lado, Lotus jazia na porta metálica do elevador, atordoado pela chuva de murros flamejantes que recebera. A imobilização física era o de menos, seu psicológico lidava com um árduo surto de incapacidade.

A arqueóloga interrompeu a trajetória dos tiros, elevando uma parede colossal, separando-se de Lotus. Aproveitando tal ocasião, Raoni posicionou as Paladinas ao teto e, com o pouco fogo que restou do seu exoesqueleto, preparou uma tempestade de disparos.

“Preciso de mais espaço ‘pra enfrentá-los.”, refletiu.

A brasa passeou pelos seus braços, com o objetivo de abraçar os revólveres; a sola dos pés foram incineradas e devidamente preparadas para um salto imponente. Ele precisava encontrar um lugar onde possuísse mais espaço para lutar, no saguão seria engolido pelas montanhas de Vion.

Semelhantes a um vulcão em erupção, as armas de Raoni salivavam por destruição. Sem remorso, ele arrancou o gatilho delas e fissurou o teto mal cuidado, criando fendas até a lanchonete do hospital.

— Caramba!!! — O coração de Flora quase pulou pela boca.

My god! — Lauren caiu da cadeira.

A dupla de amigos decidiu se resguardar no refeitório até a luta entre Lotus e Raoni acabar. Porém, não contavam que ela se estenderia até os confins do estabelecimento. Estavam sem saída.

A professora não ia deixar o índio de fogo escapar como um ninja das sombras. Com a palma da mão, pressionou o lado oposto da muralha e a fez cuspir pedras vigorosas, igual a uma metralhadora. 

— Vion! O Lotus! — bradou Sagna.

Ela não escutou Sagna, embora estivesse a centímetros de distância. Sua especialidade não era combater, era apenas estudar fatores históricos. Seu poder deveria ser manejado só em situações de perigo iminente, por isso Vion tentava solucionar tais problemas com praticidade, mesmo que alguém se machucasse no processo.

Antes que os meteoros da arqueóloga encostassem na costura da gabardina, Raoni afundou os pés no solo rubro e saltou, deixando rastros de chamas para trás, igual um foguete a decolar.

Cruzou inúmeros cômodos ao sobrevoar. Suas roupas negras lhe concediam um toque sombrio, personificando a representação de um anti-herói das trevas.

Foi recepcionado pela surpresa de Flora e Lauren, enquanto estava envolvido pelo que sobrou das brasas radiantes.

Aterrissou no restaurante, mais tranquilo que um falcão após um longo dia de caça, não tinha retornado ao chão de uma altura tão significante. As Paladinas deram cambalhotas nos seus dedos, que repousavam no gatilho. Em seguida, colocou-as no coldre preto fosco, elas mereciam descanso após um longo trabalho.

O local possuía um vasto território, apesar da exagerada quantidade de cadeiras e mesas. Quando reparou na fenda que abriu atrás de si, irradiou um sorriso orgulhoso.

— Sempre me impressiono com o que essas armas são capazes de fazer… — Ele desviou o foco da ruptura e averiguou o local. — O quê?! Vocês de novo? — Ele arqueou as sobrancelhas.

Lauren e Flora se ocultaram no balcão de atendimento, que por sua vez estava mais inóspito que um deserto. Entretanto, Lauren foi pego em uma espiada minuciosa.

— Eu ‘tô vendo vocês, hein! — Raoni andou até eles, desviando dos móveis.

— Ele não deve ter visto a gente — sussurrou Lauren. — É só um blefe ‘pra aparecermos.

— Duvido muito da sua teoria… — murmurou Flora.

— O bagulho vai ficar louco aqui, molecada! — Raoni chegou no guichê, e amaldiçoou Lauren com sua presença. — Saiam daqui antes que vocês se machuquem!

Aargh! — Lauren ficou pálido ao ver a proximidade de Raoni. — Filho da puta! Que susto!

No último campo de batalha, os projéteis rochosos continuaram em seu rumo com a mesma fome de sangue vodariano, todavia o alvo havia escapado. Eles continuariam procurando por outro, aquele que estivesse mais próximo de sua rota.

— Ah não… — Depois de ter permanecido atormentado, Lotus acordou quando percebeu a morte indo buscá-lo.

Esferas de pedra corriam a todo vapor, prestes a enterrar o jovem no elevador metálico. Não tinha segundos para colocar as engrenagens da mente para rodar, seu futuro como Vital dependia de uma reação instantânea.

Desesperado com as pedras ceifadoras, Lotus Sutol não achou oportunidades para escapar com vida. De repente, do fundo do seu subconsciente, uma voz paira pelas suas cognições, que lembrou a voz de Rudá Tlaloc.

— Você é os furacões de Voda.

Em um bater das pálpebras, Lotus revitalizou-se com o instinto ancestral da Pirâmide Vital da Tempestade e, em nome da sua vontade de sobreviver, vociferou aos montes, liberando uma cúpula de vento estritamente afiada.

As balas foram fatiadas como um bolo de aniversário, pedaços divididos adormeceram sobre o tapete vermelho; e o muro ficou a milímetros de ser derrocado pelo ímpeto das tormentas, sua frente havia mais cortes do que uma pessoa em cirurgia.

O ruído do retalho aéreo assemelhou-se com o início de um furacão catastrófico, entretanto Vion e Sagna suspeitaram que Raoni era o responsável por ele.

— Eu acertei?! — Vion fitou no fundo das írises de Sagna, ansiosa pela resposta.

— Sim… e provavelmente foi no Lotus.

A professora de braços definidos trancafiou a face, odiava ouvir o que não queria.

Aff… não é possível que ele não tenha se defendido! — praguejou Vion.

Pressionou as mãos na sua criação e, com seu acessório de combate com o nome “Pirâmide Artificial da Rocha”, a absorveu para seu corpo. Seu braço foi envolvido por uma grossa camada de pedra, nem mesmo um arpão poderia perfurá-la.

— ‘Vamo ver se o garoto ‘tá intei… — Ela acorrentou as cordas vocais ao paralisar com a presença de Lotus.

— Lotus? — Sagna também ficou atônito.

A aparência do jovem Vital não era mais a mesma, seu interior havia sido domado pelos tufões da Pirâmide Vital da Tempestade. Seus olhos foram substituídos por um céu cinza atroz, a casa dos ventos pontiagudos; o ar deslizava suavemente pelas dobras cutâneas, resfriando os músculos resilientes.

Revigorado, Lotus meneou o pescoço para cima e repudiou o estrago do Raoni.

— Lotus… como…? — Os lábios de Vion nunca mais se encontraram.

— Vamos subir e acabar com isso. — Ele se pôs no pedestal de líder.

Não aguardou a opinião dos professores, o foco englobou a mente entusiasmada do jovem Vital. Flexionando os joelhos, direcionando a aura atmosférica até os confins do pés e com os ambos braços abertos como asas, Lotus soterrou a superfície escarlate e viajou pelo túnel cavado por Raoni. 

Os arqueólogos contemplaram um silêncio mútuo, embora ele fosse rápido igual a uma volta da luz em Voda. Tinham ciência do que os Vitais eram capazes, mas Lotus era análogo a um gráfico de renda variável.

O salto impulsionou uma onda de choque, e os cabelos compridos não perderam a chance de bailarem no percurso do vento.

— Ele é muito instável, Sagna… — disse Vion, com o braço à frente do rosto.

O espanto não firmou uma coleira em Sagna, já tinha vivenciado muitas e muitas experiências ao longo de sua vida. Lotus Sutol não foi o primeiro Vital cujo lidara. Ademais, não podia desperdiçar sequer milissegundos, o oponente era formidável demais para dar quaisquer brechas. 

— Ele ainda está descobrindo seus poderes, Vion. — Sagna caminhou até o ponto onde também saltaria. — Para um jovem, o fluxo de poder de uma Pirâmide Vital é como uma explosão de hormônios na adolescência. Uma hora ele está incapaz — Dois dragões chineses verdes contornaram por seu corpo. —, e outra hora… ele age como um rei.

— Você é realmente um sabichão, hein… 

O arqueólogo careca riu pelo nariz.

 — Te vejo lá em cima. — Ele pulou e voou igual um pterodactyl.

Sagna seguiu Lotus, a fim de auxiliá-lo na luta. No entanto, Vion era muito orgulhosa para deixá-lo se divertir sozinho.

— Antes de mim ‘cê não chega não! — Vion correu até o ponto de decolagem.

Guiou todas as rochas provenientes da Pirâmide Artificial até o braço direito, a fim de sugá-las e elevar sua força. Plantou bananeira com uma única mão e esperou armazenar o máximo de pujança que poderia.

Vergando o cotovelo, Vion se ejeta para o topo do hospital e, assim, se juntar a dupla para derrotar Raoni Tlaloc.

— ‘Vamo acabar com esse cara!

Raoni retirou o casacão preto e foi deslumbrado por uma regata de algodão, também escura. Após abrir um frasco de vidro, jogou uma água misteriosa na região onde as najas de Sagna picaram, e logo esfregou.

— Não posso vacilar desse jeito… se eu tomar uma outra dessas é o fim!

Ao virar a cabeça, se deparou com Lotus levitando igual a uma divindade, preparando um ataque que irromperia o andar.

— Seu cretino!!! — bramiu Lotus.

— O quê?! — Raoni expulsou os olhos para fora.

Abruptamente, rajadas de vento atropelaram os assentos e bancadas, além de empurrar veementemente Raoni contra a estante da lanchonete. Os dentes do índio de fogo nunca ficaram tão expostos.

— Saiam daqui agora!!! — alertou Raoni a Lauren e Flora, enquanto segurava-se para não ser levado pelo vendaval.

Sagna emergiu das profundezas, e também teve que se conter para não ser lançado, manuseando seus dispositivos de neutralização.

Vion não ficou para trás. No momento em que desembarcou, se abrigou em uma égide de prisma montanhosa para se proteger da bravura do Lotus.

Quetzal do céu! É o Lotus que ‘tá fazendo isso?! — indagou Flora.

— Só pode ser! — respondeu Lauren. — Ele ‘tá enlouquecido!

A milímetros de cair de volta para o antigo campo de batalha, Sagna ordenou que Lotus cessasse.

— Se acalme, Lotus! Vamos lutar com a cabeça!

Inconscientemente, Lotus assentiu e reduziu gradativamente a potência do seu golpe.

Depois de uma simulação de tufões, o jovem Vital retornou ao chão cautelosamente, flutuando sem preocupações.

O Índio de Fogo estava ofegante, igual a um vodariano após um intenso exercício aeróbico. O tempo todo pensou em como poderia contornar a situação a seu favor, e percebeu que não tinha opção.

Ruff…! Agora ficou um pouco mais complicado…

Raoni não estava mais com toda confiança que tivera, não esperava que Lotus reergueria semelhante a uma fênix. Contudo, ainda lhe restava um último trunfo oculto, mas que custaria caro para seu organismo.

— Não tenho escolha… eu preciso fazer isso.

O trio adversário não o poupou, desfrutaram da circunstância para desferir seus ímpetos implacáveis. Lotus arremessou os vendavais confinados em sua alma; Vion gerou asteroides exuberantes; e Sagna impeliu um raio esmeralda. Mas… não contaram com a inteligência do Raoni.

Sacou as Paladinas Sedentas e ativou um mecanismo que fazia jus ao nome delas. A partir de então, elas passaram a de fato lutar pela justiça de Raoni, e não se saciarem até com o poder mais elevado.

— Podem vir! — rogou.

Subitamente, as pistolas tragaram todos os ataques, até não sobrar nada. A orbe de prana no pente tornara-se sombria como a noite. 

— O quê?! — Lotus, Sagna e Vion disseram em uníssono.



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