Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 20: Dúvidas Sanadas

Os guardiões ancestrais das extintas florestas laesperanzinas — nativas de La Esperanza —, se despediram de Voda com o peito submergido em chumbos. Séculos se passaram e, o descendente deles, colore o peito dos malfeitores com balas místicas e sangue, sua vingança vermelha e a altura.

Raoni Tlaloc alimentou as Paladinas Sedentas com os golpes elementais do trio de San Garch, encharcando-as com um poder cinza e azul. Sua fome insaciável arrastava até o mais vigoroso dos montes de prana, aspirando poder em nome da justiça.

— Isso não é nem de longe meu último recurso… — Raoni abriu um sorriso sarcástico.

“O que ‘tá acontecendo?”, indagou Lotus.

O fluxo de energia passeou pelo braço de Raoni, envolvia-se da mesma forma que uma cobra. Perambulou até abaixo da nuca, penetrou na pele parda e potencializou as brasas infernais do exoesqueleto.

Enquanto o índio de fogo canalizava energia, Lotus não deixou de se aprimorar para terminar a luta. Respirando fundo e expirando lentamente, seu coração retumbou para ativar o Heart Discharge, recebendo força e resistência adicionais. A combinação entre seu tonabless e a Pirâmide Vital da Tempestade o tornava um lutador formidável, embora não soubesse manusear tão bem seu poder.

— Não podemos perder mais tempo! — Lotus disparou até Raoni.

— Não! Volta, Lotus!!! — bradou Sagna.

Com um salto imponente impulsionado pelos ventos, Lotus despenca dos ares para afundar Raoni terra abaixo. No entanto, mal sabia que estava prestes a cavar a própria cova.

— Péssima decisão, Vital… — Os braços de Raoni mergulharam em chamas.

A centímetros dos punhos de fogo, gotas de suor escaparam com o calor evidente, Lotus claramente seria incinerado. Porém, Sagna sempre esteve ciente do pior dos perigos, posicionou ambas as mãos diante do nariz e criou um escudo cor de esmeralda para proteger Lotus.

Raoni desbravou um gancho pesado no escudo que o separava do Lotus. O estrago dos murros implacáveis foi drasticamente reduzido. Drasticamente… mas não ao ponto de impedir que Raoni atravessasse-o igual a uma bala varada.

O estômago do Lotus foi enterrado pelo tiro de carne e osso; queimou como se o suco gástrico tocasse sua pele. Gotículas de sangue foram expelidas no ar, as mesmas que se encontram nas tosses de alguém doente.

— Você é instável demais, garoto…

Lotus caiu no chão, sufocado pela ausência de ar. Se não fosse pela sua habilidade, o soco teria dilacerado suas tripas. Não satisfeito, Raoni pressionou o pé no peitoral de Lotus, como se subisse em um pedestal.

— Faltam vocês dois… — Ele arqueou as sobrancelhas para os arqueólogos.

Ao visualizar seu aluno jazido, as veias de Vion se expuseram nas têmporas em resposta à sua raiva. Deixando seu lado racional à parte, ela cobriu seus braços com rochas e utilizou os de metralhadora.

— Seu cretino!!!

— Vion!!! Agora não!!! — Sagna estendeu o braço para frente.

A arqueóloga não poupou em torrar seu armazenamento de rochas para compactar Raoni. Sem conceder ouvidos ao Sagna, ela fuzilou o índio de fogo com pedregulhos robustos, até lapidá-lo em uma montanha.

Mas… qualquer ataque à distância era inútil. As pistolas de Raoni absorviam tudo o que proclamava contra a vida dele. A veemência delas acumulava-se como pilhas a cada vez que digeriam investidas.

“Só preciso tomar cuidado com o careca… se ele me acertar de novo, provavelmente será meu fim.”, refletiu Raoni.

— Vion… precisamos enfrentá-lo corpo a corpo — murmurou Sagna. — Quanto mais lançarmos projéteis contra ele, mais ficaremos reféns de suas armas.

— Eu lhe dou cobertura, se quer tanto assim lutar de perto! — respondeu Vion.

— Isso não vai dar certo!

Vion voltou a metralhar Raoni com pedras, com o intuito de distraí-lo e dar uma abertura para Sagna. De forma alguma gostava de receber ordens, por isso mantinha-se no pódio da certeza — às vezes teimosia.

Sagna partiu para cima do índio de fogo, dragões chineses verdes correndo pelos braços. Raoni, por sua vez, decidiu ficar na defensiva e não gastar tanto prana, pois pretendia realizar algo maior.

O confronto final entre Raoni Tlaloc, Sagna, e Vion, caminhava para destruição completa da lanchonete do hospital.

Raoni se esquivava bem dos retalhos neutralizadores de Sagna, e evitava com as Paladinas Sedentas que as rochas de Vion lhe causasse problemas. Pancadas de magma eram o suficiente para manter Sagna em uma distância segura, que se defendia com escudos cor de alga.

A ponto de desmaiar, poucas cenas ressoavam no campo de visão do Lotus. Embora possuísse condições para se levantar, seus sentimentos trilhavam uma montanha russa. Era tão instável quanto o poder da Pirâmide Vital da Tempestade. O jovem tinha dificuldades de controlá-los.

“Por que eu sou tão fraco, mesmo com uma Pirâmide Vital?”

“De novo eles tiveram que me salvar…”

“O que me levou a fazer essa escolha? Por que eu acreditava que eu ia ficar forte de uma hora para outra?”

Dúvidas e mais dúvidas borbulhavam em uma chaleira efervescente, porém Lotus não tinha saída. Seu destino e propósito se definiram no momento que decidiu percorrer a comunidade.

“Não… não… não posso me lamentar agora… eu disse ao Rudá que quero mudar o mundo… não posso ficar parado aqui olhando meus amigos sofrendo… e muito menos me arrepender da minha escolha!”

Aprendeu que, em momentos cruciais, é necessário tomar decisões rápidas e efetivas. Se lamentar pelo passado não resolve nada, apenas sacia a sede dos fantasmas mentais. Lotus Sutol não era mais o universitário esforçado de San Garch, ele era o Vital da Tempestade.

“Se eu quero mudar o mundo… primeiro eu tenho que evoluir!”

Determinado e destemido, Lotus se reergueu diante da batalha periculosa. Ao menear a cabeça para o teto, avistou Raoni nos ares, com ambas as Paladinas Sedentas miradas em seu peitoral bombado.

— Você não vai escapar! — Lotus envolveu os membros superiores com um ciclone, seu calção preto dançava no ritmo do vendaval.

— Demorou muito para acordar, Vital…

Raoni fundiu as armas em uma só, criando uma aura alaranjada envolta. A fusão remetia uma pistola com o dobro do tamanho, capaz de ser chamada de ‘canhão portátil’. Subitamente, no meio do cano, uma orbe da cor da terra expandiu-se em um piscar de olhos. Um geodo rochoso pairava pelo ar, como se a lua tivesse descido em Voda.

— O quê?! — Lotus se surpreendeu.

Vion e Sagna tentaram desintegrá-la com golpes de aparência assustadora, contudo inúteis. A cada disparo que recebia, a esfera crescia ainda mais. De repente, ela já sombreava mais da metade do restaurante, prestes a engolí-lo eternamente.

— Acabou! — rogou Raoni.

Sem remorso, Raoni ejetou o planeta rochoso. Conforme caía, as sombras dominavam ainda mais o ambiente.
Mas… Lotus não iria deixar barato.

— Não vou deixar você destruir tudo!!!

Com as mãos para cima, Lotus concentrou toda a veemência do Heart Discharge para liberar o tornado mais hercúleo de Voda. Em um rugido atroz como de um leão, ele expeliu toda a energia para salvar o hospital.

Aargh!!!

Todo o empenho para conseguir empurrar o colosso de pedra impressionou seus amigos e professores. Por alguns segundos, Lotus conseguiu travar o deslocamento, mas não preocupou Raoni de forma alguma.

— Vai, Lotus!!! — gritou Flora.

Go for it, my dude! — motivou Lauren.

Lotus ficou ainda mais esperançoso e animado quando foi enaltecido, porém… infelizmente não foi o bastante. A queda voltou a acontecer, e a visão do jovem ficou cada vez mais escura, igual no cair da noite.

— Não!!! — Ele rangeu os dentes em nome do seu zelo.

Sem mais forças para combater, tudo residiu sob as trevas interiores da rocha titânica.

-----

— Ei, acorda!

“Como é..?”

— Não vai dormir pelo resto do dia né?!

“Estou vivo…?”, seus olhos ficaram semiabertos.

— Acorda logo! — Raoni deu um tapa na cara do Lotus.

Ao balançar a cabeça e finalmente abrir as pálpebras, avistou a face do Raoni, beirando os 30 anos de idade. Analisando o ambiente vazio ao redor, percebeu que estava em um local inóspito, ideal apenas para carros. Era cinzento e frio, com uma fraca luminosidade esquentando os pilares, proveniente do enorme rombo aberto no teto. O odor de pranóleo sintético — óleo de prana — ardia seus pulmões.

Também notou que estava encostado na parede do estacionamento, sem estar amarrado ou acorrentado, diferentemente dos professores.

— Onde estamos? — indagou.

— Em um lugar seguro ‘pra conversarmos — respondeu Raoni.

— E como viemos parar aqui? O que aconteceu com aquele meteoro que você criou?! — Lotus gemeu com uma fisgada na cabeça.

— Digamos que o careca conseguiu conter a maior parte dos seus machucados, te envolvendo em uma armadura anti-dano. Ele zerou a energia do corpo para salvar vocês dois… e a si mesmo — explicou Raoni. — Além disso, eu não ia deixar o hospital que nasci soterrar a sete palmos do chão… foi só para causar um susto.

Ao fitar a cratera acima — que era única fonte de luz do estacionamento — Lotus ficou perplexo com a consequência do ataque. No entanto, ainda estava atordoado com as últimas cenas que viveu, ele já não procurava o passo a passo de como as coisas eram feitas. Uma única resposta convincente bastava.

— Depois de tudo que aconteceu… você quer ‘conversar’? — perguntou Lotus.

— Não só eu, Vital… os responsáveis por você também.

Raoni deu espaço para Lotus averiguar Vion e Sagna, presos com cintos de ferro que cruzavam no abdômen, semelhante ao de automóvel. Para a sorte deles, Raoni foi piedoso em não encarcerá-los com vendas na boca e nos olhos.

— Solta eles!!! — Lotus arregalou as írises e tentou se levantar, mas foi intimidado pelo revólver do Raoni.

A força do bombado havia se esvaído, estava absolutamente fraco após exigir demais de si mesmo. Necessitava de um descanso, afinal, o dia não estava sendo fácil. Manifestantes desejaram sua morte, seu rosto rodeou pelo mundo e enfrentara um homem formidável.

Todavia, apesar de estar fraquejado, sua preocupação sempre esteve nas alturas.

— Cadê a Flora e o Lauren?! O que aconteceu com eles?!

— ‘Tá falando daqueles dois jovens que estavam mais atrapalhando do que ajudando?

— Cala a boca… — bafejou Lotus.

— Que falta de educação, Lotus… — ironizou Raoni. — Eu cuidei deles antes de vir ‘pra cá.

Imperado pelo temor, Lotus cegou-se com a intuição furiosa.

— O que você fez com eles, seu cretino?! — Ele começou a tremer.

— Ele não fez nada, Lotus. — A voz de Sagna ecoou pelo cenário vago. — Flora e Lauren estão bem.

— E como você pode me garantir isso?! — questionou Lotus, com um tom de desespero.

— Raoni não é do tipo de pessoa que tira vantagem dos mais fracos. Na verdade… geralmente ele os ajuda.

Lotus fitou Raoni, depois fitou Sagna.

— Vocês se conhecem por acaso?

— Digamos que tivemos alguns conflitos… e esse vai entrar ‘pra coleção — disse Raoni.

— Eu não perguntei ‘pra você, seu covarde!

Na hora do insulto de Lotus, Raoni se aproximou na velocidade da luz e injetou o cano da Paladina Sedenta no pescoço do jovem.

— Você me respeita, seu moleque cretino…

— Já chega, vocês dois! Isso não vai levar a nada… — apaziguou Sagna. — Sim, Lotus, eu e Raoni nos conhecemos. Mas, isso não vem ao caso…

— Exatamente — Raoni retirou a arma do pescoço de Lotus. —, não estou aqui ‘pra contar minhas histórias de vida.

— Imagino que vocês tenham uma ótima relação ‘pra prender Sagna desse jeito, Raoni — disse Vion.

— É só por precaução, arqueóloga. — Raoni fitou Vion.

O semblante de Vion figurava o ódio que ela proferia por estar trancafiada em um estacionamento imundo e sem vida.

— Bom… antes de tudo — iniciou Raoni —, vocês não estão aqui a comando do Sharkgar, não é?

— De forma alguma, Raoni. Estamos aqui justamente ‘pra que aquele ditador cretino não usurpasse a Pirâmide Vital da Tempestade. — Sagna engrossou a voz.

Raoni não duvidou da resposta de Sagna, sabia que ele tinha uma rixa de décadas com Sharkgar, o tirano que preside San Garch, embora a sede dos Arqueólogos de Aralquia ficasse lá. 

— E aí vocês deram essa tarefa ‘pra um garoto fazer?

— Não, nunca foi nosso objetivo algum dos nossos alunos absorverem a Pirâmide Vital da Tempestade… — falou Sagna. — ‘Pra ser sincero, nem nós sabemos como ele conseguiu pegá-la.

— Então vai ser mais útil eu perguntar direto ‘pra ele… — Raoni mudou o foco para Lotus. — Mas, antes, me diga seu nome.

— Me chamo Lotus… — Ele retorquiu aflito.

— Lotus… vou me lembrar desse nome. Escuta, Lotus, como você conseguiu absorver esse objeto que, por muitos e muitos séculos, foi cobiçado por inúmeros vodarianos capazes de tirar a vida até do ente querido mais próximo para conseguir tal poder? Ao julgar pela sua fragilidade, duvido que você tenha derrotado o antigo Vital em uma luta.

— Eu conheci o antigo Vital da Tempestade… disse ‘pra ele meu desejo e passei por um teste no Refúgio de Amochiom.

Raoni arqueou as sobrancelhas, incrédulo.

— ‘Tá me dizendo que você, basicamente, falou que queria ter a Pirâmide Vital e ele simplesmente te deu?

— Não foi bem assim… — Lotus revirou os olhos.

— Claro que foi! Não é possível que tenha sido realmente isso… você deve ter barganhado ele ou algo do tipo.

— Não, eu não fiz nada disso.

— Você sabe como era ‘pra ser feito o processo de transferência da Pirâmide Vital da Tempestade? — perguntou Raoni, apesar de saber a resposta.

— Não sei muito bem…

— Ela era ‘pra ser passada de forma hereditária! — Raoni atropelou a frase de Lotus. — Alguém com o mesmo sangue dos Tlaloc era ‘pra recebê-la… e não um cara estrangeiro! E você ‘tá me dizendo que com um simples diálogo você conseguiu uma das três Pirâmides que compõem a Trindade Vital?! — Ele ficou ofegante.

— Eu convenci ele de que eu seria aquele cujo mudaria Voda. De alguma forma… ele acreditou em mim.

Uma gargalhada escapou da garganta do Raoni.

— Com esse discurso barato que você convenceu ele?

— Sim! — grunhiu Lotus.

“Não vejo motivos ‘pra esse jovem mentir ‘pra mim… a sinceridade ‘tá esbanjada na face dele… Mas, só isso foi o suficiente ‘pra convencer Rudá a lhe conceder a Pirâmide Vital da Tempestade?”

Subitamente, a sirene de desastre natural começa a tocar por toda cidade de Cucaplaya. O ruído era aterrorizante, similar ao de um alerta nuclear. Até os mais soberanos estremeciam perante o ruído.

— Não pode ser… — Vion ficou desesperada.

Raoni olhou para cima, na direção que supôs a localização do centro da cidade. Dada a oportunidade do desastre natural, Raoni não a perdeu.

— Lotus… é sua chance de me provar que você é a pessoa que vai mudar esse mundo. — Ele mirou as Paladinas na testa do jovem.

— Como é?! — Lotus ficou pálido.



Comentários