Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 21: Provação

Cidade em tumulto. 

Gritos de sangrar os ouvidos. 

Automóveis abandonados igual a um mero brinquedo envelhecido. 

Sirene atuando como o chamado da morte. 

O puro suco do caos proliferou na cidade litorânea, um tsunami concederia uma viagem sem volta para as profundezas do oceano. Minutos de desespero se assimilaram a uma eternidade em uma masmorra, mas eram tão rápidos quanto um piscar de olhos.

Apenas quatro indivíduos escolheram permanecer no estacionamento do hospital. Para Raoni, o acerto de contas era de maior valor que a própria vida.

— Levante-se, lentamente. — Raoni afundou a arma no peitoral do Lotus.

As mãos para cima remeteram à incapacidade do jovem de reagir, apenas aceitou as ordens. Raoni deslocou-se para trás do jovem, no momento em que o enquadrou. Pressionou a Paladina Sedenta na coluna vertebral e continuou a dar ordens.

— Anda.

— Uma sirene de desastre natural ‘tá tocando, cara — avisou Lotus, como se Raoni não soubesse. — Não acha mais inteligente a gente discutir em outro lugar?

— Não — respondeu, frio e calculista. — Continue.

O ruído do alerta era constante, uma infinda melodia de terror. A sirene acústica aumentou seu volume drasticamente para que todos na cidade não ousassem desobedecê-la. No entanto, Raoni gargalhava na cara do perigo.

Um leve empurrão foi o suficiente para posicionar Lotus abaixo da cratera. Por ter atravessado o hospital desde o último andar, a fenda ficou extensa como um prédio. Fora as saídas, essa era a única fonte de luz que atingia o vasto estacionamento, vazio como o deserto. O tom de cinza claro focalizou em um único ponto, ofuscando apenas as penumbras.

Parado sob o resquício de claridade, Lotus mentalizava o que poderia acontecer de pior. O feixe luminoso dos céus alumbrava a pele do bombado, semelhante a um artista enaltecido por holofotes.

Em uma distância considerável, Raoni nunca deixou de alvejar Lotus. O jovem agia por pura e espontânea pressão. 

— Você irá parar esse tsunami — disse Raoni.

— O quê?! — Lotus arqueou as sobrancelhas. — Como eu vou fazer isso?

— Você se tornou um Vital e não sabe o mínimo do seu dever?

— Eu sei, mas…

— Você é o único de nós que pode pará-lo — firmou Raoni. — Ou melhor, você é o único que pode salvar essa cidade.

— Mas como você quer que eu o pare?! — Ele abriu os braços em um gesto de dúvida. — Quer que eu lute contra um desastre natural?

— Você nem se importou em saber quais as mínimas responsabilidades que teria, não é? Voda está em desequilíbrio ambiental, e os Vitais são responsáveis por amenizar a situação.

— ‘Tá bom, ‘tá bom… — retrucou Lotus. — Mas eu não sei como eu posso…

— Ele tem razão, Lotus. — Sagna o cortou. — Os Vitais são os únicos que podem interromper catástrofes naturais. A Pirâmide Vital dentro de você é responsável por controlar tsunamis, maremotos e furacões. Só você pode impedir que isso nos destrua.

— O careca ‘de milhões’ me entende… — Raoni abriu um sorriso de canto.

Sem saída ou panos quentes, Lotus meneou a cabeça para cima. Sua visão foi inundada por uma altura quilométrica, um edifício de mais de cem andares. Os flocos de poeira pairavam pelos olhos, como acordar cedo em um dia claro.

— Você quer que eu vá até o terraço ‘pra fazer isso? — indagou.

— Dá o seu jeito e me prova que é capaz de defender sua posição — respondeu Raoni, ainda apontando a pistola.

— Mas… como… — gaguejou. — Como eu posso salvar todo mundo, mesmo de lá de cima?

— ‘Tá vendo aquele cara ali? — Raoni referenciou com a arma para Sagna, que estava acorrentado na parede. — Ele virou o cu do avesso ‘pra conseguir salvar você e seus amigos. E aquela mulher ali — Ele mudou o foco para Vion. —, me enfrentou mesmo conhecendo minha reputação. Tudo isso só ‘pra te ajudar, porque de alguma forma eles ainda botam fé em você.

— Eles fizeram isso porque não querem a Pirâmide Vital da Tempestade nas mãos de pessoas piores que eu.

— Se eles só quisessem isso, eles já teriam te matado e pego essa Pirâmide Vital. Teriam muito mais clareza de como usá-la, assim como eu. Se não pode parar um desastre natural, então você não é digno de ser um Vital.

— Se está me dizendo isso, por que ainda não me matou? — questionou Lotus, com um tom de afronta. — Você parece conhecer muito mais do que eu… acabe com seus problemas agora e salve a cidade!

Tal pergunta foi um gatilho para Raoni se surpreender. Não esperava que um jovem ingênuo brincasse com a morte dessa forma. Bom… talvez ele não fosse tão ingênuo assim.

— Você quer que eu realmente faça isso?! — Raoni remexeu a arma apontada para intimidá-lo. — Mostre ‘pra mim que você é capaz logo!

Um frio na espinha foi o bastante para amedrontar Lotus. Embora fosse infamante, quando as coisas apertavam, seu medo vodariano era resgatado. Não tinha o que responder ao índio de fogo, o silêncio foi a melhor opção.

— Vai, Lotus — falou Vion. — Compensa as vezes que te salvamos.

O jovem olhou aos arredores e aos três adultos, como se procurasse ajuda. Uma bufada foi o estopim para finalmente decidir saltar ao terraço.

“Preciso dar um outro salto como aquele, só que muito mais forte… precisarei da ajuda do Heart Discharge. Depois que absorvi essa Pirâmide, estou me recuperando muito mais rápido.”, refletiu, enquanto fitava acima.

Inspirou fundo, até entupir os pulmões, e espirou cautelosamente, conectando-se com o coração retumbante para ganhar mais força. Contudo, faltava-lhe conectar com a Pirâmide Vital da Tempestade.

“Eu preciso do vendaval da tempestade… não, não preciso… pois eu sou a própria tempestade e ele que precisa de mim!”, entrou em contraste consigo mesmo.

Lotus adentrou em um conflito interno, batalhando pelos ventos encarcerados dentro de si. Com os olhos fechados, ele lutou incansavelmente para trazer de volta o seu poder dos tornados, tentando se tornar um só com a Pirâmide Vital da Tempestade.

“Eu vou salvar a todos, não tenho escolha. Eu escolhi esse destino, e vou trilhá-lo com toda minha garra!”

Ao descolar as pálpebras, um mundo assolado por correntes atmosféricas atrozes dominaram sua visão. As írises divergentemente coloridas foram substituídas por um céu repleto de cadeias de tufões.

“Preciso ultrapassar o topo desse hospital, espero que isso seja o suficiente.”

Flexionou os joelhos, guiou toda vitalidade às pernas e deu sua palavra ao Raoni.

— Eu vou te provar que eu sou capaz.

Em nome da sua bravura, enterrou o solo abaixo e se lançou para os céus, impulsionado pelos rugidos dos ventos. Análogo a um foguete a decolar, Lotus se distanciava da superfície em uma velocidade incompreensível, passando pelos anéis gigantes fissurados no hospital.

Aproximando-se implacavelmente do topo, Lotus cruzou os braços para romper o teto, seu escudo de pele e osso, resistente como ferro. Tudo o que escutou ao longo da trajetória foi o avanço contra o ar, um vento gélido que resfriou seu tímpano.

Varou o teto com facilidade, plausível de confundí-lo com papel. Todavia, isso desacelerou a decolagem, o que foi crucial para ele não ser esmagado por uma queda.

Uhuu! Eu consegui! — Lotus foi recepcionado pelo céu nublado.

Em um dos pontos mais altos da cidade, Lotus teve uma visão panorâmica da praia. O horizonte cinzento se sobressaia do oceano sendo sugado drasticamente. Contudo, passou um pouco da altura ideal para pisar no chão novamente. Sem preparo, ele despencou até o terraço.

Próximo a tatuar a face no pico do prédio, seu brado amorteceu a queda com um fluxo de vento contrário, fazendo-o levitar sobre o chão. Em seguida, finalmente repousou no terraço, após uma longa sessão de adrenalina para suas roupas.

— Eu consegui… — comemorou, ofegante e eufórico.

Raoni não pretendia deixar o jovem à vontade em tal situação, queria visualizar de perto a atitude que ele ia tomar. Então, lá embaixo, caminhou até o ponto de pulo do Lotus e manejou as Paladinas Sedentas para sobrevoar.

— Vai nos deixar presos aqui? — indagou Vion.

— Eu já volto, arqueóloga — disse. — Não vou demorar.

Com o restante de prana acumulado nos revólveres, Raoni trocou o tipo de munição para uma feita a base de ar. Mirando ambas Paladinas na superfície, dois tiros possibilitaram-o a se projetar até Lotus.

Após o jovem se reerguer rapidamente, foi apresentado a um cenário com construções mal cuidadas, banhadas pela garoa. Edifícios caindo aos pedaços era o comum e, claro, a horrenda destruição no Doom Stormbolt foi o definitivo para o clima de depressão. A ausência do Santuário de Tlaloc liberou o restante da visão do litoral. 

— Parece que tudo isso está abandonado… 

O mar não era mais aparente, suas águas foram puxadas para uma extinção em massa.

La Esperanza estava prestes a ser engolida pelo oceano.

— Como eu vou pará-lo…?

— Vai logo, Lotus. — A voz de Raoni ressoou mais perto do que Lotus poderia imaginar. — Cumpra seu dever.

— Você de novo?! — Ele meneou a cabeça para trás.

Raoni aterrissou silenciosamente, nem um morceranha — fusão de morcego com aranha — seria capaz de escutá-lo. As Paladinas Sedentas ainda salivavam pela cabeça do Lotus, Raoni nunca as tirou de mira.

— Eu terei que lutar contra um desastre natural?! — perguntou Lotus.

— Você tem que pará-lo, independentemente de como seja! — Raoni ficou nervoso.

— Mas como?! Como eu irei pará-lo?! — Lotus transbordou desespero e ansiedade.

— Se vi… Ah não… — Raoni tornou-se atônito ao fitar na direção do mar, inibindo sua fala.

— O que foi… — Lotus empalideceu ao olhar a mesma coisa, arregalando os olhos.

Uma onda colossal almejava a destruição de Cucaplaya, começando pelo Doom Stormbolt. Sua altura parecia infinita, não muito recomendada para surfistas. Era de certo que, se ela desferisse uma investida, o sudeste de La Esperanza seria digerido pelos mares.

O tormento imperou nos raciocínios de Lotus e Raoni, e a sanidade se esvaiu por completo.

— Vai, Lotus!!! Absorve esse tsunami!!! — Raoni fixou o cano no rosto de Lotus.

— Eu não sei como posso fazer isso… — Lotus tremia de tensão.

— Vai logo!!! Nós todos vamos morrer!!!

— Eu não sei como fazer… eu realmente não sei…

— Você não sabia porra nenhuma e quis ser um Vital!!! É sua obrigação fazer isso, Lotus!!! Vai deixar todas as pessoas daqui morrerem?!

— Eu não posso… eu não sei… — O ar esgotou para Lotus.

— Rudá confiou em você!!! Meu pai confiou em você ‘pra ser um Vital!!! Acorda,

Lotus!!!

A onda faminta se aproximava cada vez mais, e Lotus ficou sem condições mentais para lidar com a situação. A pressão do Raoni; a síndrome da incapacidade; a autocobrança; e o medo de perder aqueles que ama, misturou-se em uma orbe de sofrimento que pesava no coração, crescendo como um tumor descontrolado.

Um zumbido ensurdeceu o jovem, a voz do Raoni foi gradativamente abafada. Lotus estava à beira de um colapso mental. Todo o vigor do vendaval divino e da veemência do Heart Discharge, foram embora como o pappus do dente-de-leão ao ser soprado.

Em meio a uma respiração compulsória do Lotus, uma voz emerge do seu subconsciente.

— Lotus…

Era uma junção de vozes femininas e masculinas, parecia que inúmeras pessoas clamavam pelo jovem em uníssono.

— Me alimente, Lotus… eu preciso comer…

“Como é?!”, respondeu mentalmente.

— Esse tsunami… parece… delicioso…

“Não estou entendendo…”

— Eu preciso… dessa… energia… — Ela falava pausadamente.

“Energia…? Quem está falando…?”

— Ponha as mãos no chão…

“As mãos no chão…? Por que…?”

— …ou eu mesma farei isso.

Abruptamente, sem controle do próprio corpo, Lotus agachou e mergulhou as mãos no terraço. Seus olhos esbranquiçaram igual a uma lâmpada fluorescente, seus braços foram envolvidos por raios e seu bramido foi avassalador.

Aargh!!!

Acima de si, um triângulo de ponta cabeça, azul marinho e cintilante como um raio, foi invocado e, em seu centro, um redemoinho girava ferozmente exercendo um som de cachoeira. De repente, toda estrutura do tsunami foi encaminhada para um ponto, formando uma linha grossa de água, se expandindo do oceano até a localização do Lotus. 

O triângulo passou a aspirar a onda para o vórtex em uma rapidez extraordinária, como se estivesse a beber o mar. A linha aquática cruzava os céus como um disparo de canhão hidráulico.

— Ele está conseguindo… — Raoni se acalmou, incrédulo que o jovem estava salvando a cidade.

Lotus rogava intensamente, o processo era doloroso. Uma drástica quantidade de prana foi encaminhada para o corpo do jovem, algo que nunca recebera antes.

Os raios circulavam nas suas mãos; os olhos eram iguais a um farol; e, nas suas costas, a tatuagem de prisma irradiava um azul claro magnífico.

— Incrível… — Raoni abriu um sorriso sincero.

Ao absorver toda a energia e o próprio tsunami, o triângulo acima do Lotus passou a ser sugado para o corpo dele. Em cada uma das três pontas, raios foram guiados para a marca nas costas do jovem, desintegrando o triângulo por completo. Durante todo esse processo, Lotus não deixou de berrar.

O mar retornou ao estado tranquilo, a sirene cessou a ópera de horror. Pela primeira vez — mesmo que inconscientemente — Lotus salvou uma cidade.

Com tanto prana estocado dentro de si, Lotus finalmente cessou os gritos, e a única coisa que soube realizar foi respirar rigorosamente.

— Você conseguiu… isso é muito bom…

— Ei… — A voz de Lotus engrossou e duplicou.

Hm? — Raoni arqueou as sobrancelhas. “O que aconteceu com a voz dele?”

— Esse tsunami… estava… delicioso…

— O quê?! — Raoni trocou o alívio por preocupação.



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