Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 22: Autocontrole

— Lotus…?

— Eu estou… transbordando…

No terraço, Lotus se transformou em um verdadeiro parque aquático. Águas de um tsunami falecido passearam pelos músculos negros; o corpo trêmulo era a chave para entender que foi dominado pelos mares. O sorriso psicopata enaltecia o desejo destrutivo do jovem, mas de forma alguma amedrontou Raoni.

— Nunca… me senti assim… nunca mesmo… — gargalhou Lotus.

Raoni não ousou baixar a guarda e fincou o revólver na direção do jovem. “É muito poder dentro de um jovem em ascensão… será que ele vai surtar?”.

Em um piscar de olhos, Lotus se ergueu diante do horizonte nebuloso. Por precaução, Raoni deu um passo para trás e viu o Vital abrir lentamente os braços, como se o mundo inteiro estivesse na palma de sua mão.

Hahahahahahahaha!

O bombado tinha a risada maléfica, um vilão prestes a realizar seus piores feitos.

Hahahahahahahaha!

— O que ‘tá acontecendo? — Raoni assistia a cena com as sobrancelhas arqueadas.

— Agora eu entendo… agora eu finalmente entendo! — bradou Lotus, intercalando com risadas. — Agora eu entendo o porquê dos Vitais se sentirem soberanos, se sentirem melhor do que todos os outros vodarianos! É como se o mundo inteiro estivesse sob nosso controle! O oceano, a tempestade e os furacões… eu que sou o dono de todos eles!

“Que mudança de postura abrupta… se ele perder o controle e realmente compreender o que corre pelas suas veias, vai me dar um trabalhão…”, refletiu Raoni.

— Eu sou a própria tempestade!!! — Após a fala, um estrondo irrompe do céu cinza e complementa a ópera de terror risonha.

O poder subiu na cabeça do jovem, enlouquecendo-o perante uma chuva repentina. A energia elétrica banhava as suas veias, a sensação de que era o homem mais vigoroso de Voda nunca fora apreciada antes. A adrenalina e a dopamina se tornaram a razão da sua existência. Ele era imparável.

Ao fitar Raoni de rabo de olho, Lotus virou o corpo para ficar face a face com ele. O gotejar se pendurava nas pequenas ondas do seu cabelo, murchando-o até ele absorver toda a água.

— Se afasta… — Raoni alvejou-o com ambas as Paladinas Sedentas.

Ah… por que não continuamos nossa luta? Aquela hora você me pegou despreparado. Um tanto quanto… covarde. — Lotus não cessava o sorriso.

“Que moleque folgado… mas, eu não posso provocá-lo de volta, senão ele libera a energia desse tsunami e termina de destruir La Esperanza.”

— Vai gastar toda energia que adquiriu ‘pra me derrotar? Quanta ingenuidade… esse não é seu trabalho. — Era difícil assustar Raoni.

— Eu só quero terminar o que você começou. — Lotus começou a se aproximar.

— Desse jeito, você só vai continuar o ciclo de extermínio dos Vitais. Pretende expelir o tsunami que você absorveu para me matar e, também, afundar a cidade?

— O que foi? ‘Tá com medo do que eu sou capaz de fazer?

— De forma alguma… mas, eu tenho receio de que você seja o reflexo de séculos e

séculos de Vitais da Tempestade. — Raoni era firme nos seus princípios.

À medida que a conversa acontecia, a chuva evoluiu para uma tormenta. As nuvens reagiram no ritmo da loucura do jovem.

— Cala a boca! — gritou Lotus. — Eu serei muito melhor do que eles, mostrarei ‘pro mundo o que a Pirâmide Vital da Tempestade é capaz de fazer!

— Não, Lotus — bafejou. — Você é só mais um Vital com síndrome de tirania que quer superar as ações violentas dos antigos Vitais. — O cano das Paladinas Sedentas canalizaram uma orbe petrificada. — Você não é excepcional.

O sorriso reluzente se converteu em uma fúria imensurável, um ranger de dentes acompanhado pela camuflagem das sobrancelhas.

— Vai se foder, seu cretino!!! — Os punhos do jovem envolveram-se com águas atrozes, preparados para desferir um soco.

— Ei!!! — Lotus ouviu a própria voz.

Imediatamente, ele cessou o ataque.

“O quê?!”

Com o tronco paralisado, Lotus meneava a cabeça para procurar tal indivíduo que falou isso, embora tivesse sua voz. Raoni não puxou o gatilho por um fio, notou que havia algo errado com o Vital.

— Olhe para cima… — O segundo Lotus ordenou.

Ao fitar acima subitamente, Lotus não avistou nada além do céu cinzento. Entretanto, sua bochecha foi amassada por um tapa invisível. Ela não se mexeu, ela não doeu, ela não ficou marcada. Mas ele sabia que, de alguma forma, tinha recebido um belo tapa no rosto.

— Somos um só com a Pirâmide, não deixe ela nos dominar. A tirania nunca foi nosso objetivo.

— Quem… está… falando…?! — Lotus arregalou os olhos.

— Não somos mais do que ninguém. — A figura imaginária respondeu.

“Ele ‘tá falando sozinho?”, indagou Raoni.

Lotus não conseguia visualizar a representação, muito menos tocá-la. Entretanto, sabia que visualizava algo e sentia ele tocar na sua alma, como se sua intuição tivesse ganhado uma forma física.

O diálogo foi tão rápido quanto um reencontro repentino entre duas pessoas, mas tão profundo quanto uma sessão de terapia. Sua essência nunca fora perdida, apenas foi desvirtuada pelo prana que subiu a cabeça.

O jovem parou de falar no instante em que a entidade também parou, como se o

tempo da conversa tivesse sido pré-determinado. Não era a Pirâmide Vital falando com ele, e sim a própria originalidade resgatando o Lotus pós Pirâmide Vital da Tempestade.

Confuso e arrependido, ele levou a mão grossa até a testa, e assim a cobriu da chuva. O tsunami ainda passeava pelos braços definidos, porém as cognições arrogantes foram expulsas da mente perturbada.

“Parece que ele é bipolar… mas a verdade é que dentro da mente dele deve estar uma guerra sem fim. A Pirâmide Vital da Tempestade está alinhada com os sentimentos do vodariano, só que ela os intensifica drasticamente, assim como intensifica estoque de prana do corpo do Vital. Se ele não controlar o que sente, ficará cego em relação ao uso dos poderes ancestrais que possui.”, Raoni fez uma breve avaliação da situação do Lotus, enquanto via ele ofegante.

— Onde eu estava com a cabeça… — bafejou Lotus.

“Não sei como, mas ele conseguiu se controlar.”

— Me desculpa… — Lotus fitou Raoni, lacrimejando.

— Você precisa aprender a se controlar, garoto. O que você tem em mãos, requer muito autocontrole.

— Se meu interior não tivesse aparecido, eu teria me tornado o que jurei combater. — Uma lágrima se misturou com as gotas da tormenta.

— Está tudo bem agora — disse Raoni. — No confronto que tivemos percebi que, quando você armazena uma drástica quantidade de energia, você quer liberá-la o mais rápido possível. Aprenda a canalizar seu prana e fique cada vez mais forte.

Lotus prestou atenção de boca fechada, não queria falar mais nada.

— Quando você absorve um desastre natural, sua Pirâmide Vital converte a potência da catástrofe em puro prana para seu corpo, assim lhe tornando mais forte. Se você o dispersa, perde toda a energia que conseguiu e continua parado no mesmo ponto.

— Por que está me ensinando isso…? Eu quase destruí a cidade por causa da minha loucura…

— Porque você é o Vital da Tempestade.

Milhões de pensamentos perambulavam pelo cérebro do jovem, muitos deles eram sobre esse cara à sua frente que ele nem sabia o nome. “Por que ele ‘tá me ajudando? Pouco tempo atrás ele queria me matar… e outra, como ele sabe de tudo isso que está falando?”.

— Levante a cabeça e siga em frente, Lotus. Você evitou que um tsunami destruísse a cidade, mas ainda não é o bastante para me provar que Rudá estava certo. Estarei de olho em você. — Ele virou as costas para ir embora.

— Espere! — gritou Lotus. — Qual é o seu nome? O que mais você sabe sobre a Pirâmide Vital da Tempestade?

Raoni deu um sorriso de canto.

— Nos encontraremos novamente, jovem. — Raoni atirou um projétil de fogo no chão, para se impulsionar às nuvens.

Lotus testemunhou Raoni a voar com disparos no solo, suas armas eram sua  jetpack. Sozinho no terraço, o nariz mergulhou na chuva vigorosa, que diminuía gradativamente seu volume em razão dos sentimentos do jovem. 

“Quem é aquele cara? Por que ele me atacou, depois me ajudou? Não consigo

entender… espero reencontrá-lo ‘pra sanar essas dúvidas… agora, preciso desamarrar Vion e Sagna.”

O jovem olhou para a cratera que fez quando saltou até o topo do hospital.

“Eu quase afoguei a cidade com o tsunami que absorvi, tudo porque estava alucinado pela vitalidade que sentia… pensei que eu ia conseguir facilmente controlar meus sentimentos, pensei que sempre ia conseguir manter o foco das minhas virtudes… será que realmente fiz a escolha certa? Não… não é hora de pensar nisso… aquele cara tinha razão, preciso manter minha cabeça erguida e seguir em frente.”

O Heart Discharge ainda estava ativado, e Lotus nem se lembrou disso. Se tornou cotidiano ele se sentir poderoso, como se seu tonabless não fizesse a menor diferença. Só foi notar sua habilidade novamente quando se preparou para descer pela fenda.

“Heart Discharge ainda está ativado, que bom que estou conseguindo mantê-lo por mais tempo! Não vou me prender nesse erro, preciso apenas seguir em frente.”

As águas dançantes em seu braço foram encaminhadas para a tatuagem prismática nas costas, seu corpo as sugou a fim de saciar a sede de poder. Preparado para cair, Lotus mentalizou uma maneira de não se espatifar na superfície.

— Estou muito alto… preciso ser cauteloso. Ah… já sei! — Uma lâmpada incandescente clareou seus nervos. — Vou utilizar uma técnica que vi em um jogo de computador.

Então, sem hesitar, Lotus submergiu os braços — de novo — com águas divinas, com o intuito de criar um canhão hidráulico. Sem pensar muito — se pensasse, o medo o domaria —, se lançou no buraco para ir reencontrar seus professores.

A queda era alta, passava facilmente dos 30 metros. O vento contrário congelava a pele escura do jovem Sutol. Focado em sobreviver, nem se deu o trabalho de fitar os andares que passava. Seus dentes nunca ficaram tão aparentes, as bochechas queriam voar para fora do corpo.

Ao chegar próximo do solo, posicionou os braços abaixo e, em seguida, impeliu uma rajada de água extremamente poderosa, com o objetivo de inundar o estacionamento escuro. Quando a cachoeira atingiu o chão, uma breve piscina foi formada e, assim como Lotus imaginava, ele imergiu nela e sua queda foi totalmente amortecida pela água.

— Cacete!!! — Vion se assustou.

Subitamente, a piscina se dispersou e encharcou o solo, colocando o jovem no chão com total segurança. O plano do jovem prodígio foi um sucesso e tanto!

— Deu certo… — comemorou Lotus, jazido.

— Puta merda, moleque!!! Você se jogou de lá de cima?! — indagou Vion.

— Você conseguiu parar o tsunami… — murmurou Sagna.

Determinado e sem deixar espaços para os problemas dominarem a sua mente, Lotus se levantou e foi direto soltar os arqueólogos, que estavam presos com algemas nas paredes.

Primeiro, o jovem correu até Vion, pois ela não parava de se remexer. Assim que averiguou o que lhe encarcerava, Lotus não entendeu do que se tratava. O objeto era triangular e os espinhos penetravam no pulso do prisioneiro.

— Que tipo de algema é essa?

— Isso é um utensílio anti-mãos, ele não deixa que eu canalize meu poder com as mãos! Literalmente o único membro do corpo que consigo expelir minhas pedras…

— E como eu vou tirar isso?! — Lotus entrelaçou os dedos no grilhão, resfriando-os com o metal rudimentar.

— Sei lá! Usa seus poderes de Vital aí e me tira daqui logo! — praguejou Vion.

— Mas e se eu machucar sua mão sem querer? 

— ‘Cê acha que vai me ferir fácil assim, moleque?! Vai logo!

— Calma Vion… ensina ele o jeito de removê-las… — Sagna ouviu uma voz misteriosa vindo do fundo da sua orelha. — O quê?!

— Sagna, Sagna! — Uma voz dizia, com a estática de um telefone velho. — Graças a Amochiom… finalmente consegui falar com você!

— Guten… é você?!

— Guten?! — vociferou Vion. — ‘Cê ‘tá falando com ele?!

Sagna possuía um dispositivo de comunicação no fundo dos seus ouvidos, um redondo minúsculo que se localizava próximo aos tímpanos. O homem possuía uma fala modesta, a entonação de alguém no auge dos 50 anos.

— Consegui te reconectar à central dos Arqueólogos de Aralquia! Desde que você caiu em La Esperanza, não conseguimos mais contato com você!

Ah… que ótimo. — respondeu Sagna, com um sorriso exposto. — Você já está sabendo das novidades? 

— Isso pouco importa nesse momento! Só queria lhe informar que vocês estão correndo perigo máximo aí!

— Nós sabemos disso… afinal, estamos com um Vital.

Lotus e fitou Sagna, não compreendendo com quem ele falava. “Guten…? Quem é Guten?”.

— Esse é o problema, careca! Sharkgar conseguiu aval da Voquinity para enviar os soldados de San Garch buscar por vocês!

— Como é?! — Sagna arregalou os olhos. — Como ele conseguiu isso?!

— A Voquinity concedeu a permissão após o novo Vital, Lotus Sutol, criar um tsunami no litoral de Cucaplaya! O presidente de La Esperanza ordenou que ele fosse retirado imediatamente do país!

— Não pode ser… — Sagna ficou incrédulo.



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