Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 162: Escapada

Quando acordou na manhã seguinte, Xiao Shui ainda se sentia inspirada pela conversa que teve na noite passada. Assim que seus olhos se abriram e sua mente despertou, seus pensamentos foram tomados por fantasias, criadas pelas tantas histórias que escutou.

Seu dia começou repleto de imaginação e encanto. Quase podia sentir uma canção despertando entre seus lábios conforme cantarolava e se vestia, preparando-se para descer e saborear o café da manhã na companhia de seu agradável Gege. Nem mesmo o fato de que seu irmão não voltaria para casa depois desse ponto, que era a capital, foi capaz de abalar seu bom-humor. Teria muitas histórias incríveis para contar assim que voltasse para à Família e isso a deixava empolgada pelo retorno, apesar de triste pela partida.

Ao descer as escadas, ela não conseguiu conter a alegria e pulou de dois em dois degraus, saltitando feito uma criança. No instante em que alcançou o primeiro andar, seu instinto a levou a olhar para a lareira, do lado direito, e o sofá de frente a ela, pois era lá que o preguiçoso passava a maior parte do tempo desde que chegaram. Porém o lugar estava vazio.

Embora estivesse decepcionada, já que desejava narrar os eventos da noite passada, não estava surpresa. Ainda era muito cedo, afinal. Então, ela virou para a esquerda e avançou em direção a uma porta lateral que dava passagem para a cozinha e uma pequena sala de jantar adjacente.

Chegando lá, Shui se deparou com uma pessoa que ainda não era muito agradável para seus olhos. Xu Xia era a única no recinto.

A garota que pegou carona até a capital se encontrava sentada numa das pontas da mesa repleta de delícias e alguns alimentos saudáveis, além de jarras de bebida quente e suco. A refeição extravagante havia sido preparada pelas cozinheiras da vila ainda naquela manhã, quando todos estavam dormindo.

Xu Xia bebia uma xícara de chá quente acompanhada por uma torrada pela metade quando a rival do Festival da Geração do Caos chegou. As duas trocaram breves olhares, mas não se dignaram a dizer um mero “bom dia”.

Ao se deparar com aquela figura, a jovem de cabelo azul, que não sabia fazer um bom penteado, ficou ainda mais decepcionada, pois tinha esperança de encontrar o irmão. Frustrada, ela escolheu se sentar na ponta oposta da mesa e logo começou a se servir.

Nos minutos seguintes, o único som que se propagou pelo cômodo foi o dos talheres batendo e do alimento sendo mastigado. As garotas sequer trocaram um segundo olhar. Agiam como se estivessem sozinhas. No entanto, à medida que o tempo passava, isso acabou gerando um efeito desagradável. O silêncio se tornou notável e o desconforto palpável.

Depois de alguns minutos mastigando e engolindo, sem nunca levantar a cabeça, as duas perceberam que perpetuar a mudez apenas evidenciava a inimizade que sentiam uma pela outra. E embora não existisse nenhum sinal de afeição entre elas, esse não era o tipo de sentimento que gostavam de exibir. Mas, a essa altura, falar poderia ser encarado como um sinal claro de que estavam se evitando.

Por isso, as duas não conseguiram quebrar o silêncio desagradável. Mesmo quando terminaram a refeição, elas continuaram beliscando um pedaço de pão ou fruta sem muito apetite. Sair sem dizer uma única palavra era outro gesto óbvio de rejeição que preferiam evitar.

Sentindo-se incomodada, Xiao Shui desejou que alguém chegasse e quebrasse a tensão crescente. E para a sua sorte, isso não demorou muito para acontecer.

O 5º Ancião Qiao entrou pela porta muito bem arrumado para quem havia acabado de acordar. Ainda existia traços de sonolência em seu rosto, mas o cabelo grisalho havia sido penteado com cuidado e as roupas achavam-se passadas e combinando.

O responsável pela maior parte das comunicações externas da Família Xiao se aproximou e puxou uma cadeira entre as duas garotas. Mas antes de se sentar, falou:

― Bom dia!

E a resposta veio imediatamente dos dois lados.

― Bom dia!

Ele se sentou, serviu uma xícara de chá e, antes de bebericar o líquido quente, soprou o vapor para longe. Em seguida, provou a bebida como um verdadeiro apreciador, gozando do aroma e do sabor refinado sem pressa. Por fim, voltou a colocar o recipiente de porcelana sobre a mesa.

― Vocês viram o Xiao Ning ou o Xiao Chan? ― perguntou, olhando de uma garota para a outra.

― Eles ainda não se levantaram ― respondeu Xu Xia, feliz por dizer algo depois de tanto tempo calada.

― Eu procurei lá, mas não encontrei nenhum dos dois. ― Qiao bebeu mais um pouco do chá. ― Na verdade, o lugar estava todo arrumado.

― Espera! ― De repente Xiao Shui sentiu um calafrio atravessar sua barriga. ― Eles não estavam no quarto? Nenhum dos dois?!

― Não! ― O Ancião balançou a cabeça.

― Aqueles dois... ― ela se levantou em um solavanco, quase derrubando a cadeira para trás. Teve um pressentimento terrível do que aquilo poderia simbolizar. Mas não queria tirar conclusões precipitadas, então saiu da cozinha correndo enquanto murmurava: “Se aquele vagabundo tiver...”.

Xu Xia e o Ancião ficaram um tanto confusos com a reação abrupta da garota. Os dois olharam para a porta enquanto se perguntavam o que poderia ter acontecido. De longe, a dupla pôde escutar os passos pesados de Shui enquanto subia a escada correndo. Logo depois, o barulho estrondoso de uma porta batendo ecoou e, alguns segundos após, outra bateu.

Houve um momento de silêncio, seguido por um grito estridente.

― Nem passaram a noite aqui! A cama tá arrumada! Aqueles malditos! ― Novamente os passos pesados de uma pessoa furiosa descendo as escadas ecoaram. ― Eu vou matar aqueles dois! ― rugiu a filha do Ancião.

Preocupado com o que poderia ter acontecido, Xiao Qiao deixou a cozinha e se dirigiu para a sala de recepção. E Xu Xia, curiosa, veio logo atrás.

― Eles não passaram a noite aqui? ― repetiu o Espirituoso de 2ª Camada. ― Mas estavam na sala ontem, quando fui me deitar. Será que aconteceu alguma coisa?

No entanto, de tão furiosa que estava, Xiao Shui não escutou nenhuma das perguntas do responsável.

― Eu deveria ter desconfiado! ― grunhiu ela para si mesma. ― Aquele vagabundo estava comportado demais. Ele esperou eu abaixar a guarda. Aquele maldito vai ver só! Se tiver feito alguma coisa ao meu Gege...

Com as bochechas vermelhas e a raiva aflorando, ela se dirigiu até a porta de saída enquanto bufava.

Notando aquilo, o Ancião resolveu insistir nas perguntas:

― Vai aonde? Pedir ajuda para a Santa Mística?

― Não! Eu sei onde eles estão ― afirmou Shui com convicção. Dizendo isso, ela abriu a porta e saiu. Mas foi acompanhada de perto por um praticante muito preocupado e uma jovem curiosa, que só queria saber como isso iria terminar.

Do lado de fora, Xiao Shui não pensou duas vezes quando rumou em direção à saída da vila. Ela tinha pressa e por isso atravessou todo o caminho que existia da casa na qual estava hospedada até o portão que levava ao centro da capital em poucos instantes.

Quando chegou lá, quis atravessar a passagem e ir direto para o lugar em que acreditava que encontraria os dois. Porém a fala de Xu Xia a fez parar por um instante.

A jovem de cabelo dourado e olhos claros se virou para um dos guardas vigiando a abertura e perguntou:

― Com licença, você viu se os nossos amigos passaram por aqui?

Ela estava para completar a pergunta, dando detalhes sobre a quem se referia. Mas o homem a antecipou.

― Você fala do Alquimista? ― Todos na vila já sabiam sobre o convidado especial de Heloísa e Noah. ― Sinto muito. Eu acabei de chegar aqui ― lamentou por não poder dar mais informações.

― Eu vi ele e um amigo saindo ontem à noite ― comentou o outro guarda que tinha os olhos inchados de sono. ― Os dois pareciam bastante animados.

A confirmação deixou Shui ainda mais agitada. Seu rosto ficou lívido e, zangada, começou a repetir.

― Eu sabia! Eu sabia! Só estava esperando eu virar as costas. ― Batendo os pés, ela deixou a vila sem ao menos agradecer pela informação e disparou em direção ao centro da cidade.

A filha autoritária do 9º Ancião dos Xiao estava tão zangada que quando avançou através das ruas, que mesmo de manhã já se provavam bastante movimentadas, da imponente capital, não se deu ao trabalho de pedir licença e saiu empurrando os transeuntes retardatários que paravam em sua frente ― deixando a responsabilidade de pedir desculpas para os dois que vinha mais atrás. Ela bufava feito um touro de rodeio e batia os pés igual a uma Besta Demoníaca correndo para atingir o seu alvo. Seu rosto havia assumido uma expressão feia, de puro descontentamento, com a testa enrugada, os lábios franzidos, os olhos estreitos e a narina dilatada.

Apesar de não ter certeza em sua suposição, o simples fato de pensar que poderia estar certa quanto ao destino daqueles malandros a deixava em estado de cólera. Sabia que seu Gege perfeito jamais aprontaria uma coisa deste tipo, mas o outro não tinha nenhum senso de moralidade.

Seus pensamentos haviam sido tomados pela ira e a única coisa que conseguia formular era a bronca que daria no caso de estar certa.

Por outro lado, diferente da adolescente irritada, o Ancião estava extremamente preocupado. No começo, quando notou o sumiço do Alquimista e do filho de seu amigo, não deu muita importância. Mas depois de perceber que eles se achavam perdidos em algum lugar dessa grande cidade, sozinhos, a ansiedade tomou conta de seu corpo, fazendo seu coração acelerar.

Ah! E se tiver acontecido alguma coisa!? ― gemia, preocupado. ― Se eu perder o Alquimista, minha esposa vai...

Xu Xia, no entanto, estava apenas curiosa para saber como tudo isso terminaria. De certa forma, ficou surpresa com a audácia do ex-noivo de fugir quando não tinha ninguém olhando.

Diferente de Xiao Shui que parecia saber muito bem onde pretendia chegar, os outros que vinham logo atrás se contentaram em apenas segui-la sem fazer questionamentos. Embora não estivessem dispostos a admitir isso, temiam falar qualquer coisa e virar o alvo daquela fúria ardente.

O grupo avançou pelas ruas da cidade e a cada passo se aproximavam mais do enorme edifício pertencente à Seita Ebúrnea. Shui ainda não sabia andar por aquelas largas avenidas e numerosas encruzilhadas. Mas a torre alta facilitava sua locomoção conforme passava por lugares desconhecidos.

Eles continuaram andando até que enfim alcançaram a frente do enorme prédio. Porém, dessa vez, a visão magnífica não foi capaz de sequer roubar um singelo olhar do trio que passou direto e continuou em frente, seguindo pelo mesmo caminho percorrido no dia em que chegaram à cidade.

A partir de certo ponto, Xia reconheceu o trajeto que estavam fazendo, mas não foi capaz de prever qual era o destino. Até que chegaram próximo a uma rua peculiar, muito extravagante se comparada às demais.

Apesar de ainda ser dia, uma tonalidade vermelha marcava a comprida avenida. Dos dois lados, edifícios e casas menores estavam decoradas por letreiros informativos e placas que traziam desenhos insinuantes e até mesmo obscenos. Transitando pelas calçadas ou indo de um estabelecimento a outro, notava-se a presença de mulheres belas, exibindo sorrisos autênticos e trajando vestimentas provocativas.

Quando viu aquele caminho, Xu Xia não pensou, sequer por um segundo, que iriam naquela direção. Em contrapartida, Xiao Shui nem ao menos hesitou ao atravessar a rua e adentrar a sórdida avenida, que logo de início já demonstrava tremenda vulgaridade com seus cartazes obscenos e vitrines convidativas.

Cada um dos locais possuía sua própria maneira de chamar a atenção dos visitantes. Alguns, além das técnicas para atrair possíveis fregueses já mencionadas, traziam painéis contendo preços e serviços prestados. Outros já eram mais ousados e deixavam garotas e rapazes atraentes responsáveis por conduzir a chamada.

Assim que entrou no distrito, o Ancião ficou bastante desconfortável e não conseguiu tirar os olhos dos próprios pés. Quando uma garota se aproximou e o segurou pelo braço ao passo que o convidava a entrar numa casa de paredes rosas, localizada do lado direito, ele ficou corado e começou a gaguejar algo sobre a esposa e a surra que levaria. Por sorte, sua fala desconexa deixou a moça confusa, que logo desistiu da abordagem.

Diferente das outras partes da cidade, a Avenida da Sedução, como era chamada, possuía cores muito vivas e vibrantes. O lugar era colorido e repleto de enfeites para todos os lados. E no alto, notava-se varais de lanternas vermelhas formando uma complexa rede que, devido a presença do sol, estavam apagadas.

Embora a principal movimentação se dava durante a noite, o lugar mantinha uma agitação considerável, apesar de menor se comparado aos outros pontos da cidade.

Poucos instantes antes, quando percebeu que estavam indo em direção à avenida, Xu Xia começou a imaginar uma visão caótica, com lixos espalhados pelas ruas, bêbados caídos pelos cantos e um cheiro horrível contaminando o ar. Mas para a sua surpresa, o local era bastante limpo e o ar possuía um perfume adocicado curioso. Ainda assim, nada disso serviu para diminuir o desconforto.

― Acha mesmo que eles estão aqui? ― perguntou a menina de olhos verdes, olhando de um lado para o outro.

― Eu tenho certeza! ― afirmou Shui.

Agora que chegou ao local, ela não sabia muito bem por onde procurar. Se tivesse que entrar em cada um daqueles estabelecimentos, passaria o dia inteiro procurando. Então, decidiu andar mais um pouco até encontrar a casa mais brilhante de todas ― afinal, quando se trata de mulheres, já tinha percebido que o vagabundo era igual a mariposas.

No entanto, sua expectativa de achar o irmão e o irresponsável do futuro “conselheiro” logo diminuiu, pois depois de andar por alguns metros, percebeu que existia um enorme número de corredores e vielas que levava a outros bares e bordéis, alguns tão ocultos que só era possível identificar ao chegar mais perto.

Ela já estava perdendo a esperança ao passo que sua raiva e frustração apenas aumentava. Existiam centenas de lugares para procurar e não teria a paciência de entrar em cada um deles. Foi então que ouviu uma voz familiar vinda de um beco, um resmungo que entoava palavras confusas, mas que exibia uma alegria admirável.

Nesse momento, Xiao Shui parou e olhou para o lado, levando os outros dois a imitá-la. E, lá, eles viram duas figuras que lhes eram bastante comuns.

Em um beco imundo, o único que o chão ainda era de terra, decorado por garrafas quebradas e inteiras, espalhadas pelos cantos, além de lixo caído sem qualquer cuidado, notava-se a presença de um homem tão careca que o topo da cabeça chegava a refletir o brilho do sol. Seus olhos estavam tão bambos que sequer conseguia olhar para frente e as bochechas tão vermelhas que pareciam dois pedaços de brasa.

Com as costas arqueadas, os braços largados e um sorriso abobalhado, ele não demonstrava nenhum traço de firmeza. Era como se até mesmo uma criança pudesse derrubá-lo sem fazer o menor esforço.

 O grupo não teve nenhuma dificuldade para reconhecer o homem que havia conhecido apenas no dia anterior. Aquele era Carlos, o sujeito amante de pão que tinha sido encarregado por Heloísa de levar os convidados de volta para a vila após o fim do leilão.

Assim que o reconheceram, o grupo ficou bastante surpreso, mas não tanto quanto ficaram ao identificar o segundo elemento.

Logo atrás de Carlos, um garoto descalço, de pés sujos, roupa amarrotada e cabelo desgrenhado, podia ser visto andando aos tropeços. Ele avançava dois passos, mas recuava três enquanto esticava o braço, tentando segurar alguma coisa. Parecia que tentava se apoiar no homem da frente, porém sua visão turva não o permitia distinguir a distância que existia entre os dois. Assim, ao falhar, ele voltava tudo de novo e cambaleava mais um pouco, chegando ao ponto de quase cair.

A cena deplorável fez os olhos de Xiao Shui arregalarem e do fundo de sua garganta saiu um grunhido que misturava a mais pura fúria com uma condenável reprovação:

― Eu sabia! ― disse ao ver Ning bêbado, usando uma camisa feminina roxa e todo maltrapilho.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.


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