Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 163: Canção de ébrio

Tão bêbado que seus olhos eram incapazes de focar nos próprios pés, Xiao Ning se arrastava por um beco imundo após ter saído de um bar duvidoso ― localizado no fim da viela ― que possuía uma porta simples na entrada, igual a de uma casa comum. Sua cabeça balançava de um lado para o outro, igual a um boneco cujo pescoço é feito de mola.

Ele estava descalço e parecia estar assim há um bom tempo, pois a sujeira já havia deixado a sola dos pés ― que a esse ponto se assemelhavam a cascos de cavalo ― e começado a subir pelos tornozelos. A camisa que vestia não parecia em nada com uma daquelas que o tio Chang havia lhe presenteado. Tratava-se de uma peça feminina, roxa, quase lilás, e de bordas delicadas.

O despreocupado viajante da Cidade da Fronteira do Caos tentava alcançar o homem à sua frente. Esticava os braços sempre que pensava estar chegando mais perto ao passo que tentava agarrá-lo. Mas sua embriaguez o forçava, a todo o momento, a recuar mais passos do que conseguia avançar.

Foi uma luta tremenda apenas para conseguir deixar o ponto em que se encontrava. Sua cabeça balançava para um lado e o corpo ia para o outro. Os pés embolavam e os joelhos fraquejavam, mas de alguma forma ele conseguia evitar a queda desastrosa, hora se agarrando nas paredes do beco estreito e hora apoiado por uma força desconhecida.

Para a sua sorte, Carlos não estava se saindo melhor em sua tentativa de andar. Depois de avançar alguns passos, ele ficou parado, olhando para o nada com o beiço estufado e os olhos quase fechados, como se estivesse se preparando para dormir naquela posição nada confortável.

Graças a isso, Ning teve a chance pela qual tanto lutou e, sem pensar, atirou-se contra o pescoço do colega, passando o braço direito sobre os seus ombros. Os dois tropeçaram e perderam o equilíbrio. Tombaram para frente e chutaram o chão duas vezes, antes de Carlos embolar as pernas e virar para a direita. Porém o preguiçoso o puxou para o lado oposto e juntos cambalearam na direção indesejada.

E no fim, como varas de bambu verde sendo castigadas por uma tempestade, eles foram para a frente e para trás, e depois para um lado e para o outro. Mas não caíram.

O esbarrão pareceu despertar a mente quase adormecida de Carlos, que levou um susto e arregalou bem os olhos. Em seguida, sem ao menos entender o que tinha acontecido ou o que havia o deixado perto de se estatelar no chão, ele inflou o peito e berrou com emoção:

“Ah, me digam para que eu fui nascer

Senão para o meu amor oferecer?

Mas se um dia eu casar

me levem para o bar e me façam acordar”

A repentina cantoria embriagada e desafinada do companheiro provocou a reação imediata em Ning, que abriu a boca e começou a cantar junto:

“Se um dia eu morrer

Me levem para o bar me façam renascer!

Ô moça exuberante, com joias tão abundante

Que me faz amar, mesmo sem um coração para dar!

Ô moça impetuosa e tão cobiçosa

Por que meu coração foi roubar, se não podemos nos amar!?”

A partir desse momento, os dois ergueram as vozes em uníssono e se entregaram a uma cantoria sincronizada... ou tão sincronizada quanto dois bêbados poderiam ser.

“Não digam ao senhor!

Oh! Não digam por favor!

Que a mulher dele conhece o meu amor!”

Na sequência, a “sincronia” dos dois acabou quando Carlos esqueceu o trecho seguinte e murmurou algumas frases irreconhecíveis na tentativa ridícula de tentar acompanhar. E desse ponto em diante, a música aos poucos morreu, terminando com alguns grunhidos irreconhecíveis dos dois lados.

Talvez estivessem pensando que continuavam andando, pois no segundo em que se sucedeu, os dois ficaram parados, olhando para baixo enquanto balançavam as cabeças sem muita coordenação. Até que por fim, Ning decidiu quebrar o estranho momento de pausa.

― Você é um cara legal. Eu... eu gosto de você, sabia? Você... você é...

― Sabe... sabe... Escuta aqui! Escuta. ― Carlos puxou o novo amigo para perto, prendendo-o com o braço direito dobrado feito um gancho, e falou: ― Quando a Grã-chanceler pediu para eu cuidar de vocês, eu não gostei. Desculpa, mas eu não gostei. Achei que seria mais um desses ricos mimados. Só que você... você é um cara bom.

O Espirituoso de 7ª Camada balançava a mão livre sem muita coordenação, gesticulando de uma maneira dramática enquanto batia no peito ou apontava o dedo indicador. Por outro lado, Ning, com seus lábios estufados e os olhos quase fechados, apenas balançava a cabeça, aprovando tudo que era dito.

― Quando esse povo rico vem pra cá, eles me pedem pra cuidar deles. Eu... eu tenho uma habilidade especial, sabe? Eu... eu sou muito bom em “sentir” as pessoas, entende? Eu olho assim e falo: “Esse é bom. Esse ali não é bom”. Aí eu vou lá e paro a pessoa, antes que ataque alguém. Mas não conta para ninguém que eu falei isso. É um... é um segredo da Seita.

― Não vou contar. Pode confiar! ― disse Xiao Ning , que repetiu a frase duas vezes. E Carlos balançou a cabeça em aprovação enquanto afirmava: “Eu confio”. ― Mas por que você estava no leilão? ― Quis saber o preguiçoso embriagado.

E a resposta indignada veio em seguida, junto de um gesto violento do Espirituoso de cabeça raspada.

― Porque a Santa é uma chata! ― acusou. ― Eu não fiz nada de errado e ela me deixou de castigo. É uma chata!

― Eu te entendo! ― Ning se solidarizou com o novo amigo. ― Lá na... lá na minha Família tem uma menina chata que não me deixa fazer nada!

― De quem você está falando? ― Uma voz severa e carregada de fúria de repente surgiu, obrigando os dois bebuns a levantarem a cabeça.

Ali perto, o trio que percorreu todo o caminho da vila da Seita Ebúrnea até aqui a passos largos olhava para a cena com expressões incertas, como se não soubessem o que pensar.

― O que esses dois estão fazendo? ― perguntou Xu Xia, que apesar de achar aquilo muito divertido, evitou dar risadas, já que a menina ao seu lado se encontrava perto de “cuspir fogo”.

O choque para Xiao Shui foi tão grande que por alguns instantes seu cérebro congelou. Não conseguia fazer outra coisa a não ser encarar o vagabundo em sua frente com olhos e bocas abertas. Ela fitou os seus pés sujos, depois a camisa que não era dele e, por fim, mirou sua expressão abobalhada.

Vendo aquilo, sua ira escalou de tal maneira que ela apertou forte os punhos até os dedos ficarem tão brancos quanto giz e suas mãos tremerem. E tudo ficou pior ao escutar as acusações injustas que recebeu.

Em contrapartida, Xiao Ning levou alguns instantes para descobrir quem era que estava gritando com ele, pois seus olhos não eram capazes de focar muito bem nos objetos à sua frente. Porém levou um susto tremendo, quando enfim identificou o rosto vermelho parado a poucos metros, encarando-o com uma fúria palpável.

Ele se desvencilhou de Carlos e tentou aprumar a postura, mas um tropeço involuntário o fez cambalear de lado. O Alquimista trocou os pés algumas vezes, contudo não percebeu a própria instabilidade do corpo, pois, enquanto balançava, tentava arrumar as roupas para parecer mais apresentável. O que, convenhamos, não funcionou muito bem.

Com as bochechas vermelhas e os olhos brilhando devido ao álcool no sangue, Ning se esforçou para se manter focado em Shui ― apesar de haver três dela em sua frente. Um sorriso abobado tomou conta de seu rosto e, enquanto ainda buscava recuperar o equilíbrio, falou:

― Pequena... pequena... ― embolou a língua e não conseguiu completar. Soluçou algumas vezes, ficando ainda mais vermelho, e respirou fundo por alguns instantes. E quando enfim se recuperou, voltou a falar: ― O que você tá fazendo aqui?

― O que eu estou fazendo?! ― rugiu Shui, que ao perceber a tentativa descarada do vagabundo em fingir que não havia nada de errado, sentiu a raiva crescer um pouco mais. ― Seu sem vergonha! Tem alguma ideia do problema que nos causou?

― Aconteceu alguma coisa? ― Ele ainda estava tentando se manter neutro, preservar uma inocência inexistente à medida que buscava por alguma compaixão.

E o mesmo pôde ser observado em Carlos, cuja careca escarlate brilhava tanto quanto uma bola de cristal incandescente. O responsável por vigiar a entrada do piso superior durante o leilão da Seita Ebúrnea aprumou a postura e levantou a cabeça. Mas não conseguiu olhar fixamente para frente.

― Ainda tem coragem de perguntar isso? ― ralhou a recém-despertada, ficando cada vez mais impressionada com a falta de pudor do rapaz que deveria ser seu chefe. ― Você agora é uma figura importante, conhecida por todo o império, entende isso? Não pode ficar vadiando por aí dessa maneira. Isso vai manchar o nome da Família. Olha só para você. Está tão bêbado que não consegue nem mesmo ficar de pé direito.

― Que... que êbado, o quê? ― resmungou Ning, embolando as palavras. ― Eu não estou bêbado, estou feliz.

― Isso é o que todo mundo diz, imbecil! ― Shui estava se sentindo tão irada que os xingamentos saiam sem perceber. ― Eu sabia que não deveria ter deixado dinheiro com você. Me devolve! ― Ela se aproximou e esticou o braço.

Ning, que estava enfrentando problemas para se concentrar, olhou para a mão aberta por alguns instantes e, depois de uma grande dificuldade para interpretar o que tinha sido dito, falou:

― Devolver o quê?

― O dinheiro. Me devolve o dinheiro que sobrou. ― Ela não era ingênua a ponto de pensar que ele não tinha gastado parte do lucro da venda que foi dividido no dia anterior. Mas de uma coisa estava certa: não o deixaria gastar nem um único centavo a mais.

No entanto, a exigência da garota provocou uma reação diferente do que esperava. Carlos desviou o olhar e andou para o lado oposto ao grupo, tentando evitar qualquer tipo de atenção. Xiao Ning, por outro lado, começou a mexer muito os braços à medida que se explicava.

― Você não vai acreditar! ― Apenas essas poucas palavras foram o bastante para fazer a filha do 9º Ancião dos Xiao franzir o cenho. ― Apareceu um bando de cultivadores ontem. Eles estavam esperando pela gente, não estava? ― Tentou buscar algum apoio com o praticante sem cabelo, que por sua vez baixou os olhos e fingiu não escutar. ― A gente lutou contra eles, mas... mas...

― Que desculpa horrível! ― Mesmo Xu Xia, que preferiu não participar da discussão, ficou impressionada com a falta de criatividade do rapaz em sua frente ao tentar inventar uma justificativa.

Mesmo o 5º Ancião Qiao não foi capaz de se manter alheio e, temeroso pelo futuro, gemeu:

Ah! O Patriarca vai ficar irado.

Assim como os outros, Shui não acreditou na desculpa ridícula que escutou. Mas ela levou algum tempo para assimilar o que tinha sido dito, pois era difícil acreditar no tamanho da irresponsabilidade que estava presenciando. Quanto mais pensava, mais suas mãos tremiam e mais vermelho seu rosto ficava. Sua raiva cresceu a tal ponto que uma geada se desprendeu de seu corpo e provocou calafrios nas pessoas ao seu redor. Parte de sua pele foi coberta por cristais finos e quase invisíveis de gelo que fizeram os pelos de seu braço eriçarem. E ao passo que a temperatura caia, uma fumaça branca, de gotículas condensadas, foi liberada de seu nariz.

― Você gastou tudo?! ― vociferou, deixando a raiva assumir momentaneamente o controle do corpo. Ela bateu o pé contra o chão e uma fina camada de gelo envolveu a terra ao redor. ― Uma moeda! Uma única moeda de ouro é o bastante para uma família grande viver por quatro meses sem ter de se preocupar. E você gastou duzentas e cinquenta!? O que aconteceu? Jogou tudo no esgoto, foi?

― Tá bom! Tá bom! ― Xiao Ning abandonou a postura defensiva e abriu os braços de uma maneira dramática. ― Eu gastei tudo. Gastei mesmo! Mas quer saber? Valeu a pena! ― Um sorriso desavergonhado tomou conta do rosto do imprudente.

E isso só serviu para deixar Shui ainda mais furiosa, que bufou uma névoa fria carregada de cristais minúsculos de gelo.

― Seu sem vergonha! Nunca ouviu falar em “responsabilidade”, não? Isso vai afetar a Família e o Patriarca nunca mais vai confiar na gente. ― A jovem ajuizada de dezesseis anos estava pronta para iniciar uma longa discussão com o irresponsável que não se mostrava nada arrependido. Porém, ao notar a fraqueza em seus olhos e corpo, percebia que era inútil falar qualquer coisa agora.

Assim sendo, ela se adiantou, agarrou o Alquimista pelo braço e o prendeu firmemente junto a si. Ele, por sua vez, deu um pulo e tentou se afastar quando sentiu que poderia ser queimado pelo frio intenso sendo desprendido pela mão da colega. Mas ela não o deixou escapar.

― Você vai voltar comigo agora. E quando se curar, a gente vai conversar de novo. ― Xiao Shui andou em direção a saída do beco enquanto arrastava o peso morto. Mas no meio do caminho se lembrou de algo que havia sido ofuscado por sua raiva. ― Cadê meu irmão?

E com um sincronismo quase perfeito, a porta no fundo do beco foi aberta e um rapaz de cabelo escuro e barba por fazer surgiu à medida que arrastava a camisa que deveria estar usando. Calçando um par de sandálias aberta nos dedos, ele chutava o chão, levantando poeira e atirando pedrinhas para todos os lados.

Por incrível que pareça, o Despertado de 5ª Camada era o mais afetado de todos. Ele mal conseguia se manter de pé e precisava se escorar em qualquer apoio que pudesse encontrar para não acabar caindo.

― Vovô Ning! Vovô Ning! ― gritava a plenos pulmões.

Ele se agarrou nas paredes laterais do beco e deu alguns passos descoordenados. Mas andar se mostrou um desafio acima de suas capacidades atuais e quando uma pedra entrou em seu caminho, o embriagado de vinte e três anos torceu o tornozelo e caiu de lado.

― Gege! ― grunhiu Shui, desesperada.

***

O caminho de volta para a vila da Seita Ebúrnea foi mais complicado do que o grupo são poderia ter imaginado. Eles tentaram incentivar que os três amigos festeiros voltassem andando por conta própria. E no começo, isso até funcionou, já que um se apoiou no outro e juntos marcharam pela rua do bairro imoral. Mas essa parceria logo se mostrou um problema e não uma solução.

Ning e Chan passaram a cantar e trocar elogios desconexos. E sempre que via um estabelecimento familiar ainda em funcionamento, Carlos convidava os garotos para irem dar uma olhada.

Ainda assim, o pior de tudo era que avançar por um único metro levava uma eternidade para acontecer, já que eles andavam para frente, depois para trás e então para os lados.

Percebendo que desse jeito não fariam nenhum progresso, Shui decidiu “carregar” Ning, enquanto Xiao Qiao ficou encarregado de Carlos e Xu Xia cuidou do irmão mais velho da antiga rival.

E como se não fosse vergonhoso o bastante arrastar três bêbados pela imensa cidade, o mais constrangedor aconteceu quando enfim chegaram na vila. As pessoas pararam o estavam fazendo apenas para assistir ao desfile dos patetas que não conseguiam andar em linha reta. Alguns apontavam e riam, e outros faziam piadinhas sobre o Espirituoso de 7ª Camada com quem tinham mais intimidade.

Ao que parece, todos concordavam que Carlos estaria encrencado.

Quando enfim chegaram na casa em que estavam hospedados, Xiao Shui não se deu ao trabalho de levar o irmão e os demais para um quarto. Sentindo-se muito frustrada e envergonhada, ela decidiu largar o bando irresponsável na sala mesmo, na qual cada um ocupou um lugar.

Assim que entrou na casa, Carlos se jogou no chão e por ali decidiu que passaria as próximas horas, roncando e babando. Já Xiao Chan escolheu o piso em frente a lareira para dormir, apesar da insistência da irmã em conseguir um travesseiro e uma colcha. Ning foi o único que teve certo conforto ao conseguir se deitar no sofá.

O Alquimista se jogou de qualquer jeito na mobília forrada com couro de modo que parecia que iria cair a qualquer segundo. E logo que se acomodou, fechou os olhos e parou de falar coisas aleatórias, dando a impressão de que já havia entrado em sono profundo.

Naquele instante, Xiao Shui, que o ajudou a chegar até ali, acreditando que por enquanto não teria mais nada para fazer, decidiu se afastar e procurar um lugar para pensar nas broncas que daria mais tarde. Porém, quando ela estava para deixar a sala, um resmungo melancólico chamou sua atenção.

― Pequena Shui ― disse Ning ainda de olhos fechados. ― Você está com raiva de mim?

― Estou! ― respondeu ela, fria e direta.

― Me desculpe! ― pediu ele através de um murmúrio arrependido. ― Eu só queria... divertir um pouco.

Xiao Shui continuava furiosa e não o perdoaria com tanta facilidade. Mas algo em seu jeito de falar, em seu tom aparentemente arrependido, abalou sua ira e a fez questionar se estava sendo severa demais.

Por um segundo, ela suspirou indecisa. E após um momento de silêncio, falou:

― A gente conversa depois ― dizendo isso, ela se virou e se afastou.

 


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