Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 164: Bem na hora

A tarde do dia seguinte ao leilão na Casa das Relíquias Perdidas na vila pertencente à Seita Ebúrnea foi marcada por muita gritaria e diversas punições. Quem andava pela rua de paralelepípedo, mesmo de longe, conseguia ouvir a voz furiosa da Santa Mística ecoando através das paredes de uma das casas.

― Eu te dei uma tarefa! Uma única tarefa! ― repetia ela, gritando tão alto que a voz chegava a falhar quando atingia um timbre elevado. ― Vigiar e proteger o Alquimista de pessoas más intencionadas. E o que você fez?

Naquela manhã, Heloísa Valentina de Carvalho havia saído pouco antes do sol nascer, pois precisava resolver um assunto urgente que surgiu. Desde ontem, quando foi revelado a nova parceria da Seita, muitas coisas aconteceram e isso a deixou bastante ocupada em um curto período de tempo. Por esse motivo, só ficou sabendo da artimanha de seu subordinado após retornar de uma reunião que teve ao lado de algumas figuras estrangeiras.

Porém, assim que descobriu, ela fez questão de acordar o sujeito que encontrou desmaiado na casa que deveria ser dos convidados especiais.

Nesse momento, ela estava no hall de entrada, encarando o praticante de 7ª Camada, que havia sido impedido de se levantar, enquanto gesticulava com agressividade e o repreendia.

― Eu vigiei e protegi o Alquimista ― retrucou Carlos, que apesar de estar encolhido no chão, sentado de pernas cruzadas feito uma criança arrependida, ainda tinha coragem para desafiar a poderosa Santa Mística. Seu rosto estava inchado por ter sido forçado a acordar antes da hora e a despeito de já fazer algumas horas desde seu retorno da Av. do Charme, ele ainda demonstrava sinais de embriaguez.

― Você o levou para uma das regiões mais perigosas da cidade. Tem alguma noção do problema que isso teria nos causado se tivesse acontecido alguma coisa? Da vergonha que a Seita teria enfrentado por sua culpa?

― A culpa não foi minha. ― Carlos colocou a mão sobre a cabeça e começou a coçar. ― Ele e o amigo disseram que iam dar uma volta, então eu decidi ir junto para garantir que tudo iria... sabe? Ficar bem. Acho até que deveria receber uma promoção pela atitude ― bateu a mão no peito e ergueu a cabeça. ― Não foi fácil gastar todo aquele dinheiro.

Se Heloísa não estivesse tão acostumada com a atitude desrespeitosa do funcionário, ficaria chocada. Mas essa não era a primeira vez que ele aprontava alguma coisa. Por isso sabia bem que tipo de punição aplicar.

A sentença da Grã-chanceler foi de que Carlos passaria os próximos dois meses ajudando na faxina da vila. Ele ficaria responsável por tirar o lixo e limpar todas as áreas que os outros preferiam evitar, como banheiros. Além do mais, também teria de tirar a poeira de todas as casas vazias.

Ao mesmo tempo, ali perto, outra bronca estava sendo dada por uma garota que poderia competir com a ira da própria Santa.

Xiao Ning e Chan estavam sentados no sofá, um do lado do outro, encolhidos e de cabeça baixa, com uma postura inofensiva e até um tanto submissa. Um cheiro desagradável de álcool exalava pelos poros dos amigos que precisavam de um bom banho e mais algumas horas para dormir. Algo que ficava evidente por suas expressões cansadas e abatidas, sem falar dos olhos fundos, marcados por bolsas roxas.

No entanto, mesmo que eles desejassem um lugar calmo para se retirar e curar a dor de cabeça, não havia recinto na casa para onde fugir. Em qualquer lugar que tentassem se esconder, eles seriam descobertos e a bronca se tornaria ainda mais pesada.

Embora estivesse zangada, Xiao Shui esperou pelo momento em que os dois acordassem para que enfim pudesse despejar sua imensa frustração. Afinal seria impossível discutir com eles naquele estado. No entanto, essa espera foi menor do que previa, já que a Grã-chanceler apareceu e sua fúria abalou toda a casa.

No momento em que percebeu que os dois haviam despertado, a responsável de dezesseis anos aproveitou para encurralá-los e externar tudo o que havia remoído nas últimas horas. Seu foco inicial foi o irmão, que apesar de ser mais velho, não conseguiu escapar e contestar a irmã.

― Eu não acredito que você fez isso! ― dizia ela como quem está extremamente decepcionada. ― O que o papai diria se te visse assim? Você está cheirando igual a um porco. É isso que faz na Seita Waidanshu? Fica por aí gastando dinheiro em bares? Precisa parar de seguir esses vagabundos por aí. Eles não vão te levar a lugar algum. Eu sei que você é melhor do que isso.

Ei! Ei! Ei! ― Ning, que mal conseguia manter os olhos abertos, sentiu a necessidade de se opor ao que estava sendo dito. ― Eu ainda estou aqui, sabia? E não obriguei ninguém a fazer nada.

― Você, fica calado! Ainda não chegou sua vez. ― Xiao Shui era impiedosa e não pretendia escutar as reclamações feitas a seu respeito.

Ela estava sendo tão rígida que mesmo o Ancião, que estava assistindo a discussão em um canto, ficou com pena dos meninos e decidiu intervir.

― Eu entendo que esteja chateada ― ele começou a falar com seu tom reservado e pouco determinado ―, mas pelo menos todos estão bem. Acho que o melhor agora é comemorar...

― Por favor, não tente defender eles, Ancião Qiao! ― Mas Xiao Shui ainda tinha muita coisa para dizer e não permitiria que ninguém a interrompesse.

E apesar de ser a autoridade máxima entre os Xiao presente, Qiao se encolheu todo ao receber a bronca. Embora fosse impossível, era como se até mesmo sua Energia Espiritual tivesse encolhido para fazê-lo parecer mais insignificante.

Ali perto, Xu Xia assistia tudo com extremo divertimento. Por não ter envolvimento com nenhuma das duas organizações, ela foi poupada tanto de receber uma bronca quanto do papel de dá-la. Mas por se tratar de uma situação engraçada, decidiu permanecer por perto para ver como tudo terminaria.

Xiao Shui continuou dando sua demonstração de ira e já estava se preparando para mudar de foco e despejar a fúria no Alquimista. No entanto, quando ela apontou o dedo para o outro lado, pronta para lançar outra ofensiva, algo a interrompeu.

De repente o barulho de alguém batendo na porta soou e as duas liderando a repreensão pararam por um momento. Heloísa, que se encontrava mais próxima da entrada, abriu a porta e deixou um homem entrar.

― Desculpe-me por interrompê-la ― disse o sujeito, que lançou um olhar desdenhoso para Carlos. ― Chegou uma visita para o Grã-Alquimista. Eu tentei dispensá-los, mas eles insistem em vê-lo.

Ao ouvir aquilo, a postura dos presentes mudou, pois o citado estava a pouco tempo na cidade e não possuía ninguém próximo para visitá-lo. Shui sabia melhor do que ninguém da impopularidade do colega que só começou a mudar há pouco tempo e por isso o olhou com certa estranheza.

Ah, bem na hora. ― Por outro lado, Ning ficou aliviado com a notícia. Não havia momento melhor para receber uma visita. ― Até que enfim eles vieram.

Tal fala incitou a curiosidade de Chan, que decidiu perguntar:

― Você sabe quem é?

― Eu tenho um palpite ― confessou o preguiçoso, que apesar de não ter plena certeza, podia imaginar bem os rostos das pessoas que estavam vindo vê-lo.

A Grã-chanceler não ficou contente em ser interrompida por visitantes que não haviam sido convidados ou marcado, propriamente, um horário. Mas foi avisada que as pessoas pedindo um encontro com o Alquimista eram viajantes importantes e mereciam certa atenção. Ainda assim, ela teria os dispensado se fosse a vontade de seu mais novo parceiro. Porém, o prestigiado garoto de dezesseis anos parecia ansioso para receber os estrangeiros.

Dessa forma, o homem que interrompeu as broncas voltou para buscar os visitantes. E nesse meio tempo, bastante preocupada com a aparência, Shui aproveitou o pouco tempo para deixar o irmão e o “chefe” mais apresentável, obrigando-os a jogar água no rosto e arrumar o cabelo despenteado. Infelizmente não teve tempo de encontrar uma camisa nova para Ning, já que os estrangeiros, apressados, não demoraram muito para chegar.

A comitiva de três homens que apareceu era liderada por um sujeito que possuía na cabeça um coque chamativo e trazia na cintura uma espada curva e fina, que mesma na bainha se destacava devido a sua forma peculiar e atrativa.

Com olhos estreitos, bochechas inchadas, sem um único fio de pelo facial, e lábios finos, o estranho não detinha uma aparência atrativa e muito menos marcante. Mesmo assim, Shui o reconheceu graças ao Kimono que usava ― o casaco era azul-marinho e as calças cinzas.

Aquela era a mesma pessoa responsável por comprar todas as pílulas que foram vendidas durante o leilão na Casa das Relíquias Perdidas.

O homem conhecido como Masao, entrou na casa com uma postura reverente, tentando passar ao mesmo tempo uma sensação de submissão e respeito. Liderando a comitiva, ele cruzou a porta e avançou até a sala de recepção, onde os locais o aguardavam enfileirados um do lado do outro.

Embora não estivesse tão surpreso por ver aquelas pessoas, a Energia emitida pelo grupo de visitantes causou certo estranhamento em Ning. Todos os três eram praticantes do Reino Espirituoso e o que possuía o nível mais alto se encontrava na 4ª Camada. No entanto, a Energia Espiritual emitida por eles era um tanto peculiar. Passava uma sensação afiada e precisa, sem desvio ou oscilação. Ainda assim, o mais curioso era o fato de que todas eram extremamente semelhantes.

Por causa de métodos de treinamento diferentes, Técnicas de Combate distintas, tempo de cultivo e diversos outros fatores, a Energia Espiritual das pessoas tendem a apresentar severas distinções. Mas a daqueles sujeitos eram quase iguais, como se fossem o mesmo indivíduo ou dividissem uma rotina tão parecida que as diferenças se tornam insignificantes.

Ao longo de sua vida, Xiao Ning experimentou tal sensação poucas vezes. Esse tipo de similaridade só era possível encontrar em facções disciplinadas e militarizadas cujos membros dividem o mesmo treinamento e estilo de vida ― algo bastante raro.

Seja como for, perceber esse fato apenas deixou o preguiçoso de cabelo comprido e desarrumado curioso para saber qual era o motivo da visita.

O grupo entrou na sala de recepção e a primeira coisa que fizeram foi parar em frente a Heloísa e prestar um respeitoso cumprimento ao curvar a cabeça de forma submissa.

― É uma grande honra estar na presença da Santa Mística ― disse Masao. ― Agradeço-lhe por ter nos recebido, apesar da nossa inconveniência em aparecer sem avisar.

― A Seita Ebúrnea fica feliz em receber os enviados do Xogum Taishi. ― Heloisa apresentou o mesmo grau de cordialidade ao cumprimentar o líder do bando e seus seguidores, embora não tenha se curvado. ― Foi um prazer ter o Comandante da Ordem Pública em nosso leilão, dando lances.

― O prazer foi todo meu ― respondeu Masao que manteve os braços colados na cintura em uma postura rígida. ― Fiquei muito impressionado com os artigos que conseguiu juntar em uma única edição. Devo confessar que o evento de ontem foi ainda mais impressionante que o do ano passado. Só é uma pena que eu não tenha conseguido adquirir mais itens. E talvez, quem sabe, um dia a Grã-chanceler possa me contar a história de como conseguiu uma espada tão magnífica. Mas hoje eu gostaria de abordar outro assunto.

Ele se virou e, por um segundo, encarou com intensidade o jovem usando uma camisa feminina. Em seguida, aproximou-se e falou:

― É um enorme privilégio estar na presença do Grã-Alquimista. ― Masao voltou a curvar a cabeça e continuou: ― Jamais em minha vida imaginei que teria a oportunidade de estar na presença de uma entidade tão prestigiosa.

― Quanto exagero ― Xiao Ning esboçou um sorriso desleixado e em troca recebeu um olhar severo de Shui, que considerou a atitude do colega um tanto desrespeitosa. Mas o preguiçoso não deu importância para isso e continuou: ― Eu só estou começando. Ainda falta muito para evoluir.

― Quanta humildade! ― A resposta despretensiosa do rapaz surpreendeu toda a comissão estrangeira, que suspirou e soltou algumas frases de admiração. ― Sua modéstia me impressiona ― acrescentou Masao. ― Por já ter alcançado o ápice da Alquimia em tenra idade, ninguém o julgaria por agir com arrogância. Ainda mais agora que se situa entre as figuras mais ilustres do Continente. Mesmo assim, escolhe a simplicidade. E, por isso, tem meu respeito. ― Outra vez curvou a cabeça.

Embora não refletissem a mais pura realidade, as palavras do comandante não passaram despercebidas pelo bando que veio da Cidade da Fronteira do Caos.

― Como assim: “mais ilustre do continente”? ― indagou Chan, depois de olhar de maneira suspeita para o amigo.

Nesse momento, Masao percebeu que, com exceção da Grã-chanceler, o resto estava muito confuso a respeito de sua declaração, sem saber ao certo se ele tinha exagerado de propósito ou se havia algo especial no que tinha dito.

― Entendo. Vocês ainda não sabem ― concluiu o sujeito de Energia afiada. ― Bem... após a demonstração de ontem, os representantes das demais nações que estavam presentes no leilão enviaram seus mensageiros de volta às suas nações de origem para informar aos líderes supremos do surgimento do mais novo Grã-alquimista. Acredito que em poucas semanas todo o Continente saberá o seu nome e o de sua Família ― olhou para Ning. ― E o fato de ter feito uma aliança com a Seita Ebúrnea trouxe ainda mais prestígio a sua pessoa.

A informação foi recebida com espanto por Shui e os demais. Eles, em especial o 5º Ancião Qiao, já imaginavam que algo do tipo pudesse acontecer. E para falar a verdade, alguns até torciam por isso. Mas não esperavam que fosse ser tão rápido.

Xu Xia ficou tão surpresa que demonstrou admiração e um pouco de inveja através de seu olhar discreto em direção ao vagabundo ainda bêbado. Sabia que seu futuro seria grandioso. O mesmo pôde ser observado em Xiao Shui, que entendeu a importância que isso teria para a Família.

No entanto, tais reações fortes não foram observadas em Ning, que embora estivesse surpreso, não se importava tanto com o prestígio e a fama que receberia.

― Tenho certeza ― Masao voltou a falar ― que todos eles gostariam de estar aqui para lhe presentear e desejar felicitações por suas conquistas. E eu também desejo o mesmo. Mas, infelizmente, minha vinda é egoísta. Sei que você e sua Família não têm a obrigação de me receber, porém eu gostaria que me escutassem por um segundo. Eu tenho um pedido pessoal e para o meu Reino que gostaria de fazer. Poderíamos conversar em um lugar particular?

 


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