Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 167: Equipe

A declaração final do 5º Ancião poderia ter causado grande espanto no grupo, se não tivessem percebido o rumo que a conversa estava tomando. Mesmo assim, foi bastante incomum ver alguém ocupando tal posição elevada ser influenciado com tanta facilidade.

Xu Xia olhava para o praticante grisalho com certa estranheza. Depois de tudo o que viu, ficou difícil para ela continuar enxergando aquele sujeito como um líder respeitado. A Família Xu podia não dispor de praticantes tão poderosos quanto ele em abundância, mas seus representantes jamais seriam ludibriados por um garoto daquela maneira.

Outra pessoa que estava um tanto espantada com o rumo final da discussão era a própria Heloísa Valentina de Carvalho. Embora tenha preferido não interferir, percebia-se pela expressão em seu rosto certo descontentamento.

― Você tem certeza? ― A testa da Santa Mística estava franzida de uma maneira que, apesar de sutil, denunciava severidade. ― Eu prometi para o seu Patriarca que os protegeria, mas, se deixarem o império, estarei limitada.

No entanto, a despeito de suas preocupações, o Ancião tinha sido enfeitiçado. Seu rosto foi tomado por um sorriso abobalhado que trazia em sua essência profundos devaneios.

― Tenho sim! Depois disso eu vou passar o resto do ano sendo mimado pela minha esposa. ― Após dizer isso, ele, alegando que precisava se preparar para a viagem, deixou a cozinha e voltou para o quarto.

Xiao Ning aplaudiu e elogiou a atitude, dizendo que: “isso sim era determinação”.

― Eu também vou me preparar ― falou. ― Quem sabe a gente não parte ainda hoje.

Ele se virou e ameaçou deixar o recinto, mas antes que se afastasse muito, algo o impediu.

― Espere! ― pediu Shui com um tom rigoroso.

E embora ela tenha dito uma única palavra, aquilo desestimulou Ning de tal maneira que seus ombros arquearam e uma expressão desanimada tomou conta de seu rosto conforme colocava a mão direita sobre os olhos fechados e suspirava.

― Eu sabia que estava quieta demais ― resmungou. Em seguida, com um sorriso forçado, virou-se e perguntou. ― Qual o problema?

― Não falei nada antes, porque também acho que seria ótimo para a Família poder pagar a dívida de outra maneira. Mesmo sendo perigoso, talvez a gente possa conseguir uma grande contribuição.

― Então a gente está de acordo! ― Prevendo que essa conversa poderia seguir outro rumo, Ning se preparou para fugir. Mas antes que se afastasse, a jovem rigorosa bateu a mão contra a mesa, assustando quem estava ao seu lado e obrigando o preguiçoso a parar.

― Porém ― acrescentou com a voz elevada ―, eventos recentes me provaram que não posso confiar em você. Sendo assim, nós só vamos se me prometer que não irá aprontar nada e seguirá as ordens minhas e do Ancião.

― Sua também? ― reclamou ele, torcendo o nariz.

― Sim! Minha também ― grunhiu ela de forma determinada. ― Eu vou garantir que você não faça nada de errado. Ficarei na sua cola o tempo todo até voltarmos para casa. E se reclamar, eu faço o Ancião mudar de ideia. Se acha que conseguiu enganá-lo, saiba que eu sou uma das melhores amigas da filha dele. Basta eu dizer alguma coisa para ele perceber que essa ideia é estúpida e a gente não vai mais.

Nesse momento, Ning soltou um suspiro pesado e olhou para baixo. Em seguida, voltou para a mesa, parou ao lado da jovem de cabelo azul e expressão severa, colocou a mão em seu ombro e, olhando-a nos olhos, falou:

― Pequena Shui, mesmo que viva cinco ou dez mil anos, ainda não será o bastante. A vida é muito curta para ficar pensando em não cometer erros. E são esses erros que torna a passagem tão memorável. ― Falando até aqui, ele respirou fundo, olhou com grande expressividade para a garota à sua frente e acrescentou: ― Até daqui a pouco. Vou arrumar as coisas.

Xiao Ning não tinha a intenção de ficar argumentando e por isso deu as costas para Shui e se afastou a passos largos antes que fosse interrompido outra vez.

O resto do dia foi marcado por muita agitação na casa em que os visitantes da distante Cidade da Fronteira do Caos ocupavam. Apesar de não poder acompanhar a irmã e os demais na viagem, Chan também ficou bastante ocupado com as preparações. Já que seria deixado sozinho, ele decidiu aproveitar o momento para retornar aos cuidados da Seita Waidanshu. Em breve os testes para novos discípulos externos começariam e, sendo um veterano, precisaria estar lá para ajudar.

Ao mesmo tempo, Xiao Shui, que deveria ter se ocupado com as próprias coisas, dedicou a maior parte do seu dia em ajudar o Alquimista a se preparar, o que não foi tão difícil, levando em consideração que o grupo ainda não havia se estabelecido completamente na casa. O mais complicado foi obrigar o trapaceiro a devolver o dinheiro que sobrou da noite passada.

Ela precisou usar de chantagens e muitas outras artimanhas para fazê-lo abrir mão das poucas moedas que sobreviveram a noite de devassidão. E embora acreditasse que não sobrou muita coisa, a jovem de dezesseis anos e olhos claros foi surpreendida quando resgatou somente cinco moedas de prata e doze de bronze.

Aquilo a fez perder a paciência outra vez e logo uma nova discussão teve início. Mas como o grupo não dispunha de muito tempo, Shui decidiu que guardaria o rancor até o momento de voltar para casa. Só então deixaria o Patriarca ou outro líder assumir a responsabilidade de dar as broncas.

Xiao Ning estava ansioso por essa jornada que o levaria a um reino totalmente desconhecido. A possibilidade de se deparar com novos materiais de estudo o empolgava a tal ponto que o fazia esquecer da iminente destruição continental que se aproximava a cada dia.

As descobertas que fez ainda na Cidade da Fronteira do Caos o deixaram otimista a respeito das pesquisas futuras que poderia guiar. Mesmo que o conhecimento local seja limitado e dificulte seu avanço nos estudos, como aconteceu no caso das Iscas-de-bobo, ele ainda dispõe da possibilidade de fazer as próprias descobertas e se tornar uma referência futura no campo das pesquisas.

Quando pensava em tudo isso, o Grã-alquimista, outrora um dos maiores influenciadores em sua área, ficava extremamente empolgado. Tanto é que insistiu para saírem ainda naquele dia. Levando em consideração o quão desesperado Masao e seus homens estavam, com certeza aceitariam partir mais cedo do que o previsto.

Contudo, dessa vez, Xiao Qiao negou o pedido e foi incisivo quanto a necessidade de enviar uma carta para o Patriarca, avisando o motivo da viagem e o destino. Segundo o Ancião, eles ficariam muito tempo fora e se não informassem de maneira clara todos os detalhes, existia a chance de causar uma preocupação geral na Família.

― Quanto tempo para chegar no Reino Amêi? ― quis saber Ning.

― Eu nunca fui até lá ― admitiu Xiao Qiao. ― Então não tenho certeza. Nossa sorte é que já deixamos a Floresta das Mil Perdições. Estamos na metade do caminho e não têm tantos monstros pela frente, como antes. A gente deve chegar no porto de Falésia em dez dias ou menos. É difícil dizer com certeza.

Argh! Vocês deveriam inventar um meio de transporte mais rápido. ― Apesar da boa notícia de que estavam na metade do caminho, Xiao Ning se viu obrigado a reclamar da lentidão que se tinha nessas viagens.

Enquanto o resto se apressava para se preparar física e mentalmente para a viagem, Xu Xia ficou um tanto deslocada. É óbvio que ela também arrumou as coisas. Afinal, quando os demais partissem, não teria mais o direito de permanecer ali.

Sem a mesma disposição do restante, ela terminou de se preparar cedo e depois passou grande parte do dia sozinha. Da cozinha, ela escutava Shui gritando com Ning coisas do tipo: “Por que você tirou tudo da Bolsa?”; “onde colocou os sapatos?”; “como rasgou a camisa?”

A praticante Despertada não tinha certeza, mas parecia que o preguiçoso estava dando muito trabalho para a colega. Em contrapartida, o irmão mais velho da dedicada Cultivadora Elemental do Gelo parecia sempre pronto para partir em uma nova jornada. Antes mesmo do sol se pôr, ele já tinha terminado os preparativos e, então, ficou na sala, em frente a lareira, aguardando por companhia.

Ainda assim, o mais agitado de todos era o 5º Ancião. Apesar de ter tomado a decisão final, ele ainda se mostrava indeciso e, em certos momentos, arrependido. Ao escurecer, pouco depois de enviar a carta explicando as circunstâncias ao Patriarca Enlai, o cultivador ficou muito inquieto e começou a andar pela casa de um lado para o outro.

Xu Xia o viu entrar na cozinha quatro vezes enquanto segurava uma banana que descascou, mas não comeu. O Espirituoso grisalho dava voltas ao redor da mesa, sempre olhando para os próprios pés à medida que sussurrava frases aleatórias.

“Será que fiz a coisa certa?”; “Minha esposa vai ficar orgulhosa!”; “Mas e se ela ficar com raiva?”; “Minha filha vai sentir saudades”. Sua insegurança era notável. Mesmo assim, ele sempre voltava atrás e reafirmava para si que seguiria em frente.

Xu Xia permaneceu sozinha por um longo tempo, assistindo a desordem que tomou conta da casa. Até que, pouco antes do jantar, alguém apareceu para lhe fazer companhia.

Xiao Shui ficou tão cansada de ajudar o preguiçoso que, depois de terminar todos os preparativos, desceu e se juntou ao irmão. Precisava ficar um tempo longe do motivo de sua dor de cabeça. Já Ning, faminto, sentiu a necessidade de se satisfazer e foi até a cozinha procurar algo para comer.

Chegando lá, ele encontrou a ex-noiva de cabelo dourado sentada, encarando a madeira da mesa com um semblante distante e melancólico. A distração da garota era tanta que sequer percebeu sua aproximação.

Embora não fosse tão ligado a ela, foi difícil para Ning não reparar em seu rosto abatido. Assim sendo, o preguiçoso pegou uma maçã que estava numa cesta de fruta localizada ao lado de um armário de parede, puxou uma cadeira e se sentou de frente para a menina.

― Qual o problema? ― perguntou enquanto arrancava um pedaço da fruta.

Hm... ― Xu Xia demorou para perceber sua presença. Mas quando levantou a cabeça e o viu, exibiu um sorriso fraco e falou: ― Nada importante.

Era evidente sua falta de sinceridade. Mas, apesar disso, Ning preferiu não insistir.

― O que vai fazer amanhã? ― resolveu falar de outro assunto que julgava mais adequado.

No entanto, a reação que recebeu foi diferente do que esperava, pois, a garota de olhos verdes, mostrou outro sorriso fraco à medida que a expressão em seu rosto afundava em melancolia.

― Eu não sei! ― respondeu ela, balançando a cabeça. Seus dedos circularam uma pequena imperfeição sobre a superfície da mesa conforme a incerteza crescia em sua mente.

― Você não vai voltar para a sua Família? Aliás, por que veio para a capital? ― Xiao Ning não havia percebido isso até o momento, mas ainda não sabia o motivo de tê-la encontrado na saída da cidade, procurando por carona.

A sucessão de perguntas invasivas provocou um desconforto crescente em Xu Xia que, por um segundo, pareceu mais velha, desgastada, cansada. Ela perpetuou o silêncio desconfortável, até enfim ter coragem para abrir a boca.

― Eu não vou voltar. Fui expulsa da Família Xu.

E bem nesse momento, quando revelou o motivo de estar ali, Xiao Shui passou pela porta.

A filha do 9º Ancião ficou paralisada ao perceber que tinha escutado uma coisa que não havia sido dito para sua pessoa. Em choque, olhou para Xia por um instante, sem saber como reagir. Depois, mirou Ning com uma expressão perdida e por fim falou:

― Eu só... Eu vim... ― Apontou para a cesta de frutas do outro lado. ― Eu vou deixar vocês sozinhos. ― Sentindo-se constrangida e deslocada, ela se virou e saiu a passos largos.

A sensação que ficou na cozinha foi de desconforto. Xu Xia foi surpreendida pela aparição repentina da rival e isso a fez se sentir incomodada, já que não pretendia sair espalhando seus problemas. Ning, da mesma forma que a amiga de cabelo azul, recebeu a informação com espanto. A menina em sua frente era um dos principais talentos dos Xu e isso o fez se perguntar que tipo de travessura irreparável havia aprontado para acabar sendo expulsa.

― Como isso aconteceu? ― Estava curioso para saber a trajetória que levou a essa decisão.

― Prefiro... não comentar. ― Mas Xu Xia não estava disposta a aprofundar no assunto, pois meramente relembrar o ocorrido a deixava incomodada.

O que se seguiu foi um momento prolongado de desconforto para as duas partes. Ning conhecia muitas frases de efeito e citações bregas que poderia fazer, mas percebeu pelo rosto abatido da garota que fazer isso poderia ser pior. E por um instante, ele respeitou o silêncio e se conteve de maiores comentários.

Mas então, de repente pensou em algo.

― O que acha de trabalhar para mim?

― Como assim? ―  A proposta pegou Xu Xia despreparada e, sem perceber, ela abandonou a expressão abatida e arregalou os olhos.

― Isso mesmo! Trabalhe para mim. ― Ele voltou a repetir. ― Veja bem, eu decidi fazer algumas pesquisas no Império Dourado, mas para isso vou precisar de ajuda. Muita ajuda, já que não tenho muito tempo. Você parece ser inteligente e determinada.

― Eu... não posso aceitar.

― Entendo. ― Ning ficou desanimado, pois de fato desejava tê-la em sua equipe. Acreditava, de verdade, que poderia dar uma grande utilidade a ela. ― Você deve preferir ficar longe da Cidade da Fronteira do Caos, depois de tudo o que aconteceu.

― Isso não é verdade! ― Xu Xia logo tratou de corrigi-lo. ― Eu amo minha cidade e todo mundo que conheço está lá. Mas eu não poderia... te explorar dessa forma. Você já fez muito me trazendo até aqui e me perdoando por tudo o que fiz...

― Exatamente! Eu te perdoei. ― Ela ainda tinha algumas coisas para falar, mas Ning foi rápido ao interrompê-la. ― Ficar remoendo isso toda vez é chato. Então para de se preocupar. Além do mais, não estou mentindo sobre precisar de ajuda. Já comecei a montar um time, mas ainda não é o bastante.

Seria mentira se Xu Xia afirmasse que ainda não estava relutante. Mas a firmeza na voz e postura do rapaz em sua frente era tão notável que a fez pensar, por um instante, com total seriedade. Mas logo percebeu que existia outro problema.

― Acho que a Xiao Shui ficaria incomodada se eu me juntasse a vocês.

― Acha mesmo? ― Ning estranhou a alegação. ― Vamos descobrir. ― Ele se levantou, caminhou até a porta da cozinha e de lá gritou: ― Ei, pequena Shui! Tudo bem se a pequena Xia começar a trabalhar com a gente?

Houve um momento de silêncio prolongado por todas as partes. O Alquimista virou a cabeça de lado, para escutar melhor a resposta. Já a referida, fechou as mãos e aguardou com ansiedade.

Foi então que um grito do outro lado da casa surgiu:

― Você é o chefe! Faça o que quiser.

― Viu só! ― Com um sorriso triunfante, ele se virou para encarar a jovem de cabelo dourado. ― O que me diz?

Percebia-se que Xu Xia continuava indecisa. Mas no fundo sabia que só existia uma resposta para essa proposta. A única resposta que a permitiria voltar para perto de sua casa, de seus amigos e das pessoas que tanto se importava.

― Eu aceito! ― falou com um olhar esperançoso.

 


 

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