Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 184: Exames

De frente para a imagem imponente, mas, ao mesmo tempo, decrépita do Xogum, Xiao Ning aguardou para que o outro lado falasse antes de acrescentar qualquer coisa. No entanto, devido ao estado abatido apresentado pelo líder máximo do reino, que lutava até mesmo para manter uma postura razoavelmente aceitável e digna, demorou alguns instantes para que as próximas palavras surgissem.

Taishi exibia uma respiração pesada e inconstante. Sua expressão ficava mais pálida a cada segundo. E sua testa começou a ficar molhada de suor devido ao tremendo esforço que fazia. Em determinado momento, sua fraqueza foi tanta que, mesmo sentado, inclinou-se de lado e ameaçou desabar. Contudo, antes que fosse de encontro ao chão, Moro Raijin, um sujeito alto, de boa aparência, cabelo escuro ― não muito grande ― e preso num característico coque, possuidor de uma expressão branda e genuinamente calorosa, adiantou-se e o apoiou, ajudando o seu irmão mais velho a ficar no lugar.

No entanto, o Xogum era orgulhoso e não podia demonstrar nenhum sinal de fraqueza, ainda mais diante de convidados. Dessa forma, espantou o mais novo com um aceno de mão truculento que veio acompanhado de alguns resmungos. E após enfim manter a mínima estabilidade na respiração, abriu a boca:

― Nos últimos meses... ― começou com uma fala arrastada e pesada ― eu tenho visto muitos médicos. Todos me dizem que sabem qual é o meu problema. Não sou médico... Não entendo dos males do corpo humano. Então, que outra escolha eu tenho senão acreditar em suas palavras? Mas confesso... que tem sido um pouco desgastante ter esperança de encontrar uma cura ― nesse momento, ele fez uma pausa mais longa do que o normal, antes de continuar: ― Porém ― disse usando de uma grande eloquência ―, conheço alguns Alquimistas e sou familiar às suas Chamas da Essência. Se você é metade de quem diz ser... estarei ansioso para receber um diagnóstico. Do contrário, é melhor que parta agora antes que nós criemos expectativas irreais.

Suas palavras fizeram Ning entender que ele estava pedindo uma demonstração de suas capacidades como um Grã-alquimista. Assim sendo, sem perder tempo, o jovem de alma velha ativou as Chamas de Róseo e fez uma singela exibição.

Quando terminou, ficou evidente pela expressão nos rostos daqueles que ainda desconfiavam, certa surpresa e encantamento. Mesmo que discreta, o Xogum se permitiu esboçar uma expressão mais branda, quase de alívio.

― Bem ― balbuciou ele, após alguns instantes de silêncio prolongado ―, embora eu nunca tenha visto um Grã-alquimista (acredito que poucas pessoas vivas em todo o continente tenham de fato visto um), preciso ceder e reconhecer que o que eu vi corresponde às lendas. Além do mais, é impossível confundir uma energia tão particular.

Enquanto falava, notava-se que ele estava um tanto quanto empolgado. Sentado, meio caído, em seu trono, remexeu-se com inquietação, quase perdendo o pouco de postura que lhe restava.

― Acho que não tenho sido muito cortês ― disse o Xogum, mudando o tom para algo mais receptivo. ― Vocês acabaram de chegar e ainda não conhecem nada e quase ninguém, além do Comandante Ito Masao e seus homens. Permita-me mudar isso... ― fez uma pausa, para recuperar o fôlego. Em seguida, apontou para a direita e falou: ― Aquele ali ― indicou o homem que carregava duas espadas ― é o Comandante das nossas Forças de Defesa. É um sujeito leal que tem servido este líder aqui há muito tempo. Seu nome é Isamu!

Xiao Ning e Qiao olharam em conjunto para o homem apontado e o estudaram por um segundo. Seu rosto pouco expressivo denunciava grande rigor e uma confiança em si mesmo absoluta. O que não era de se estranhar, já que, de todas pessoas que os dois viajantes encontraram desde que deixaram o Império Dourado, aquele praticante Espirituoso da 5º Camada era sem dúvida alguma o mais poderoso. Não o que possuía a maior Energia, e sim o que exibia a maior força latente.

Após a breve introdução, o Xogum mudou de direção e apontou para outro sujeito que estava imediatamente ao seu lado.

― E este daqui é o meu irmão mais novo, Raijin. Enquanto estiverem sob este castelo, qualquer que seja seu pedido ou de seus amigos, faça a ele.

― É um prazer recebê-los em nosso lar ― disse o mais novo que, com sua expressão branda, se adiantou e se curvou de uma maneira respeitosa. ― Estou ansioso para auxiliar o Grã-alquimista.

― Bem ― o Xogum abriu a boca com sua voz trovejante, embora rouca, interrompendo o irmão. ― Antes de começarmos, eu soube que vocês também trouxeram algumas amigas ― disse, olhando para os dois convidados parados no meio do salão. ― Onde elas estão?

― Ficaram lá fora ― respondeu Ning, mantendo um tom formal.

― Neste caso ― Taishi olhou para a entrada, mirando a pessoa que se encontrava prostrada próximo ao portal ― deixe-as entrar. Elas também são convidadas.

Ao ouvir a ordem, a porta que dava acesso para o salão foi aberta e, alguns instantes depois, duas garotas entraram um tanto acuadas. Shui e Corina avançaram pelo local de cabeça baixa e com uma postura bastante discreta. Elas andaram em sincronia até se aproximar dos outros dois visitantes e então pararam a alguns passos de distância.

Embora estivesse tentando se comportar, a nova integrante do grupo que possuía cabelos dourados não pôde evitar de reparar que o homem cansado, sentado no trono, era exatamente igual a uma das estátuas, alta, dotada de ossos largos e imponente, que viu na entrada do castelo. E apesar de achar isso curioso, este não era o momento de focar nessas coisas.

Tanto Ning quanto Qiao repararam que ambas estavam se comportando com bastante cautela. E estranharam isso. Mas eles não foram os únicos a notarem a maneira das garotas agirem.

― Não precisam ser tímidas. Vamos! Se aproximem mais ― pediu o Xogum, que tentou levantar um braço e gesticular. Porém, sem força, desistiu e fez um gesto usando apenas os dedos.

As duas, agindo de uma maneira bastante automática, avançaram juntas.

― Vocês parecem pouco à vontade ― comentou Taishi com sua voz pesada. ― Acredito que alguém deve ter lhes dito sobre algumas regras para seguirem. Mas, por favor, ignorem isso. Vocês são convidadas do Comandante Masao e são livres para fazer o que desejarem.

Apesar da permissão que receberam, ambas hesitaram. Elas olharam duvidosas para o Xogum, incertas se deveriam aceitar aquilo como uma mera cortesia ou se poderiam voltar a agir com normalidade. Foi apenas depois de alguns segundos sem saber o que fazer, que Shui decidiu se manifestar.

― Então eu posso ignorar aquela bobagem de ficar dois passos atrás dos homens? ― questionou, demonstrando certa inocência na voz.

Oho... ― Taishi ameaçou rir, mas sua respiração pesou de repente, impedindo-o de continuar sua gargalhada profunda e gutural. E, apesar de rejeitar tal gesto mundano, tossiu algumas vezes antes de conseguir se controlar. ― Mas é claro ― deu sua aprovação. ― Para ser sincero, eu também não gosto muito dessas regras e prefiro que se comportem naturalmente perto de mim. Não sou nenhum Oni, afinal.

Assim que escutaram aquilo, Shui e Corina se sentiram instantaneamente mais relaxadas e abandonaram a postura rígida.

― Bem ― Ning se manifestou, chamando a atenção do grupo para si ―, agora que já decidimos isso, o que acham de avançarmos para o principal? Se é verdade que o Xogum está doente há bastante tempo, então precisamos começar o quanto antes.

***

Em um canto afastado do centro de Porto Verde, a singela capital do reino, cujo acesso era dificultado por uma estrada que fora, em algum ponto do tempo, engolida pela vegetação selvagem que se alastrava, ficava uma comunidade pequena, composta por poucas pessoas e residências em situações precárias.

Com lixos espalhados por alguns cantos sem qualquer tipo de cuidado, ruas esburacadas e maltratadas pelo tempo, prédios inteiros demolidos e um sistema de esgoto miserável à céu aberto, era mais do que evidente que aquela área tinha sido abandonada pelas autoridades locais.

Mesmo assim, ainda existia alguma vida naquela região.

Neste momento, em uma das poucas casas que parecia adequada para receber residentes, uma mulher jovem, de cabelo rosa-vivo e estatura mediana, subiu na varanda frontal protegida por telhados pontiagudos e se deteve por um segundo. Ela tinha uma expressão cansada, mas não parecia ser uma exaustão física, já que se recusou a se sentar em uma cadeira de balanço parada ali do lado. Em sua mão havia uma horripilante máscara demoníaca e, presa na cintura, notava-se uma chamativa espada curva.

Seu rosto era belo, atraente e, se não fosse pelas linhas duras compondo sua expressão, também poderia ser chamado de delicado. Seu cabelo, rosa, como já mencionado, possuía um penteado peculiar. Ele se juntava em um ponto, formando um volumoso coque. Mas, devido ao tamanho exagerado, caía ao longo de suas costas em um comprido rabo de cavalo. E o lado esquerdo de sua cabeça era raspado, de modo que se preservava unicamente uma sombra discreta de pelos.

Diferente do que se observava nas outras pessoas na cidade, ela usava o Kimono pela metade, deixando a parte superior caída como se fosse um macacão de um exibicionista, presa apenas por uma faixa de cintura. Seu tronco ficava quase que completamente exposto, sendo que a única parte protegida era seu tórax, protegido por uma faixa branca apertada que ocultava o formato de seus seios.

No entanto, o maior destaque de sua aparência ficava para uma tatuagem que se estendia ao longo de todo o seu braço até o pescoço. O desenho apresentava um conjunto de galhos pretos decorados por flores de cerejeira desabrochando.

Demonstrando sua enorme frustração, a bela jovem, com os punhos fechados, socou o parapeito da varanda, fazendo a madeira ranger. Em seguida, bufou algumas vezes, deixando a raiva extravasar.

Demorou alguns instantes para que ela conseguisse se controlar. E quando enfim a veia em seu pescoço parou de latejar, virou-se e se preparou para entrar na casa.

Mas então, neste momento, a porta se abriu e, de lá de dentro, saiu um homem que parecia ter por volta dos quarenta anos. Ele usava bermudas largas e uma camisa de manga curta cinza, desbotada. Seu cabelo, despenteado, era curto e simples. Sua barba malfeita expunha os tufos faltando ao longo de seu rosto, de modo que deixava mais evidente as rugas de cansaço ao redor de seus olhos castanhos. Aquele era Shin, um homem bastante conhecido naquela região.

Segurando um cachimbo apagado composto por uma haste longa, com mais de trinta e cinco centímetros, e um fornilho pequeno, ele saiu de maneira casual enquanto balançava o objeto de madeira envernizada.

― Está chegando agora, Aika? ― perguntou Shin.

― Sim ― respondeu a garota, mantendo-se simples. ― Eu fui ao mercado ver se encontrava salmão. Mas já tinha acabado.

Hm... Então o salmão já tinha acabado ― murmurou ele, de uma maneira insinuativa. ― Sua fedelha idiota! ― berrou de repente, abandonando o comportamento calmo e assumindo uma postura severa. ― Acha que alguém acreditaria em uma desculpa esfarrapada dessa? ― E num ato impulsivo, balançou o braço e acertou a ponta do cachimbo na jovem logo a sua frente.

― Essa coisa fede, seu velho resmungão! ― protestou Aika, que levou a mão à cabeça e massageou o lugar atingido. ― Não encosta isso em mim.

―Você acha que pode exigir alguma coisa, sua fedelha?! ― Shin foi inflexível. ― Pensou que eu não iria descobrir, é? ― voltou a acertar o cachimbo contra a cabeça da garota. ― Que ideia idiota foi essa, de atacar o grupo do Comandante da Ordem Pública? Você poderia ter morrido!

― Como você descobriu? ― grunhiu Aika, que se afastou para não ser mais golpeada pelo objeto malcheiroso. ― Aquelas fofoqueiras te contaram?

― É claro que contaram ― respondeu o sujeito de expressão severa. ― Elas estavam preocupadas.

― Vocês estão exagerando ― protestou a imprudente. ― Eu posso cuidar de Masao sozinha.

― Mesmo que seja verdade, o que aconteceria se os outros soldados tivessem chegado antes de vocês recuarem? E se Isamu tivesse aparecido?

― Então qual é a sua sugestão? Eu deveria ter assistido aquele Alquimista ir para o castelo sem fazer nada? E se ele puder curar o Xogum? ― Aika sabia que tinha sido descuidada, mas não se arrependia de suas ações.

Notando sua determinação e postura inabalável, Shin a encarou com seriedade por um segundo. Mas ele entendia muito bem os seus sentimentos e, por isso, deixou escapar um suspiro exaurido, antes de relaxar os ombros e se sentar na cadeira de balanço.

Sentado, o sujeito demorou alguns instantes para voltar a falar. Percebia-se pelas rugas expressivas em seu rosto que estava refletindo sobre algo. E num gesto que chegava a ser quase ritualístico, colocou o cachimbo na boca e mordiscou de leve a piteira, tomando cuidado para não marcar a madeira com seus dentes.

― Como era o Alquimista? ― Por fim, perguntou.

― Não era como eu pensei que seria ― respondeu ela.  ― Ele não parecia... misterioso. Parecia só um cultivador comum.

― Cultivador? ― Shin ficou curioso com o comentário. ― Em que Camada estava?

― 2º Camada... do Reino Espirituoso.

― Tem certeza disso? ― O sujeito mordiscando a ponta do cachimbo questionou com estranheza.

― Tá achando que eu cometeria um erro tão bobo?! ― Aika se sentiu injustiçada e bufou pelas narinas.

― Não é isso. Só que... bem, Alquimistas que já despertaram a Chama da Essência, geralmente não cultivam muito. É raro um deles chegar ao Reino Espirituoso.

― Esse era um Espirituoso ― afirmou Aika, certa de que não tinha se enganado. ― E ele também sabia lutar muito bem.

Diante dessa informação, Shin se calou. Enquanto balançava em sua cadeira feito um velho sem muita disposição, ele olhava para fora da varanda, contemplando o céu com um olhar distraído. E foi apenas depois de algum tempo em profundo silêncio que enfim voltou a abrir a boca:

― Como está a Keiko?

― Ela... ― Aika fez uma pausa. Era difícil não se sentir culpada, já que a ideia da emboscada foi sua e a amiga apenas a seguiu. ― Vai ficar bem. O comandante Masao a atingiu, mas foi um corte superficial.

― Isso é bom... ― concluiu Shin, bastante vago, ainda mirando o céu azul.

Mais uma vez, o silêncio tomou conta da atmosfera. Entretanto, isso não durou muito, pois Aika ainda tinha algo para falar.

― O que vamos fazer agora? ― perguntou ela.

E para essa pergunta, Shin não tinha uma resposta.

***

De volta ao castelo, localizado no topo do Morro da Melodia, Ning e os demais haviam se deslocado para um quarto adjacente ao aposento principal do Xogum, que contava com uma vista espetacular do jardim exterior e de quase toda a extensão da cidade. As únicas deixadas de lado foram Xiao Shui e Corina, já que ali estava acontecendo o exame do grande líder local e pareceu inapropriado ter a presença de duas jovens garotas no local.

Taishi, com seus ombros largos e braços compridos, achava-se deitado sobre um futon, de costas para baixo, expondo seu tórax definhado pela doença e a horrorosa cicatriz que cobria parte do lado esquerdo de seu corpo. E logo ao seu lado, examinando-o com cuidado, estava Xiao Ning.

O Grã-alquimista, que também se saía muito bem de médico, já havia feito uma série de perguntas padrões, buscando, quem sabe, traçar um diagnóstico inicial. Depois disso, ele passou a usar o tato para investigar mais de perto a causa da doença.

Ning estava, neste momento, pressionando as costelas do lado direito do Xogum ao passo que perguntava:

― O que sente quando eu aperto aqui?

― Apenas seus dedos ― respondeu o Xogum.

― E aqui?

― Ainda nada.

O Grã-alquimista parou sua investigação e pensou por um segundo. Em seguida, pediu a ajuda de Raijin para sentar o Xogum e mantê-lo naquela posição por alguns instantes. No início, Taishi reclamou de tal pedido, alegando que poderia fazer algo tão simples sozinho. Mas como logo percebeu, sem o seu trono para apoiá-lo, ficar em qualquer posição que exija o mínimo de esforço era simplesmente impossível para o seu eu atual.

― Corrija-me se estiver errado ―  disse Ning de uma maneira bastante formal. ― A febre apareceu antes da fadiga, certo? E Vossa Excelência começou a tossir há apenas algumas semanas, correto?

― Exato ― respondeu o Xogum, de maneira breve.

― O último doutor que veio, falou que o meu irmão foi afetado por algum tipo de vírus desconhecido que o infectou e deixou sequelas graves ― comentou Raijin. ― Por isso está demorando para curar.

― Ele está onde agora?

― Voltou para o seu reino de origem.

― Bem ― o médico atual fez uma breve pausa ―, ele só deve ter dito isso para agradar a Vossa Excelência. Afinal eu nunca conheci um vírus capaz de infectar um cultivador dessa maneira. Mesmo Técnicas de Cultivação Espirituais Mundanas conseguem combater esse tipo de mal. E ainda que existisse algo capaz de passar por essa defesa tão eficaz, os sintomas seriam mais leves.

Enquanto falava isso, Ning se deslocou para as costas do Xogum, virou a cabeça de lado e chegou com o ouvido bem perto do lugar em que fica os pulmões.

― Você não... deveria usar um estetoscópio para isso? ― indagou o líder debilitado.

― Seria o ideal ― aprovou o rapaz estranhamente sério. ― Mas infelizmente, por não ter sido uma viagem planejada, eu não trouxe nenhum. Não se preocupe. Eu tenho uma audição excelente. Agora, respire fundo. ― E assim o Xogum fez.

― Eu posso conseguir os equipamentos necessários ― propôs Raijin. Embora fosse anormal encontrar um médico sem sua maleta de apetrechos, ele entendia que o visitante especial não teve tempo de se preparar adequadamente, algo que foi reforçado por Masao alguns instantes antes.

― Isso seria bom. Irá me ajudar durante o próximo exame ― disse Xiao Ning, mantendo um tom formal de voz ao mesmo tempo em que apresentava certa indiferença, um distanciamento impessoal. ― Vossa Excelência se recorda se a falta de ar veio antes da tosse?

― Sim ― confirmou o Xogum, falando com dificuldade. Ele arfou algumas vezes, tentando manter a respiração estável, e voltou a abrir a boca: ― No começo era... só um mal-estar, uma sensação um pouco... sufocante. Mas depois... eu comecei a ter problemas sempre que tentava fazer... alguma atividade. E quanto mais difícil era respirar, mais eu tossia. Minha voz... também ficou mais rouca.

― Entendo ― murmurou Ning, pensativo. ― Tente tossir uma vez para mim. ― E assim o Xogum fez.

Até aquele momento, as perguntas feitas pelo Grã-alquimista estavam todas de acordo com um roteiro que Taishi e seu irmão mais novo já tinham escutado dos outros médicos. Todos, sem exceção, falavam da febre, da tosse e da falta de ar ― sintomas bastante evidentes. Depois disso, eles pediam mais algum tempo para fazer novos testes e, no fim, apontavam para alguma doença misteriosa que logo se curaria sozinha.

No entanto, após uma breve avaliação e reflexão, as perguntas feitas por Ning sofreram uma leve alteração peculiar, que chamou a atenção dos presentes.

― Vossa Excelência experimentou algum tipo de dormência?

― Não.

― E dificuldade em falar?

― Não. Só a voz rouca.

― Na verdade, irmão ― de repente Raijin o interrompeu ―, nos primeiros dias, quando a doença piorou, você não estava conseguindo falar muito bem algumas palavras. Parecia estar embolando a língua.

― Tem certeza? ― perguntou Ning, sentindo que estava chegando em algum lugar.

― Eu me lembro disso. ― Neste momento, o sujeito, dono da Energia Espiritual mais afiada e proeminente daquele lugar se manifestou. Com os braços colados ao lado do corpo em uma postura rígida, Isamu, parado ao lado da porta de saída, deu um passo para frente e voltou a falar: ― O Grandessíssimo Xogum também trocou algumas palavras por outras.

― Só mais uma coisa ― acrescentou Ning. ― Vossa Excelência se importa se eu coletar um pouco de sangue?

― Espere um pouco. ― Antes que uma resposta fosse dada, Isamu sentiu a necessidade de voltar a se manifestar. ― Não posso permitir que sangre o Xogum...

Mas antes que ele conseguisse terminar de falar, Taishi fez um gesto com a cabeça, ordenando que ele ficasse quieto. E então, perguntou:

― Você sabe qual é a minha doença?

― Infelizmente, não tenho certeza ― respondeu Ning com sinceridade. ― Pelo que me disse até agora, pode ser diversas coisas. Por isso preciso do sangue. Muitas vezes, ele pode falar mais do que qualquer paciente.

― Se é assim... você terá meu sangue. Prefere fazer isso agora? ― O Xogum estava pronto para esticar o braço e ter uma veia perfurada, mesmo se tivesse de fazer isso usando uma faca.

― Na verdade, antes eu gostaria de pedir alguns equipamentos. Nada muito complicado. Coisas simples.

E após isso, Ning fez uma pequena lista contendo o nome de alguns equipamentos simples e disse que, depois que tudo fosse arranjado, voltaria para fazer novos exames. E então, saiu. Mas não antes de apresentar uma respeitosa reverência.

***

O jardim externo, que cercava todo o redor do castelo, era de fato exuberante. Em primeiro lugar, é preciso destacar a visão espetacular que, dependendo do ponto em que se olha, é diferente. Por exemplo, de frente para a ala reservada exclusivamente para uso do Xogum, a vista que se tinha era da cidade e, ao longe, achava-se o ancoradouro onde acontecia a maior movimentação dos barcos. Do lado em que ficava o dormitório feminino, havia o assombroso e infinito “Fim do Mundo”, com sua escuridão que engolia o céu e partia a terra. E, por fim, no flanco oposto, ficava uma vegetação densa, simples, bruta e natural.

Mas é claro, a visão espetacular do horizonte era apenas uma das coisas que fazia daquele jardim sobre o monte um lugar tão fascinante. A cena composta por flores de diversas cores e tamanhos, canteiros harmoniosos e um agradável lago artificial que ficava de frente para a janela do quarto principal do Xogum e serpenteava ao redor da luxuosa moradia era o que verdadeiramente tornava aquele ambiente tão memorável.

Neste momento, Corina se encontrava parada de frente a um magnífico jardim de tulipas vermelhas e amarelas. Estava admirada com o belo arranjo feito por algum paisagista, que tinha criado a imagem de uma carpa usando apenas aquelas duas cores. Ela ficou tão entretida e fascinada que, por um instante, esqueceu de Ning e da doença do Xogum, o qual, gentilmente, pediu a uma das empregadas da mansão para guiar as convidadas até aquele lugar enquanto elas aguardavam o fim da análise inicial.

Outra pessoa que tinha ficado fascinada com o arranjo natural do lugar era Shui, que estava grudada na borda do lago. A água era tão cristalina que dava para ver o cascalho branco no fundo e os peixes nadando. Alguns eram tão grandes que pareciam capazes de devorar uma criança. Outros, no entanto, eram pequenos, tímidos e não saiam da beirada, pois temiam ir para as partes mais profundas e acabar sendo devorados. Mas havia uma coisa que todos tinham em comum: eram vivamente coloridos, quase como se alguém os tivesse pegado e pintado suas escamas uma por uma.

Quando ela se agachou ao lado do lago, os peixes, adestrados, também se aproximaram e começaram a nadar em círculo. E aquilo pareceu diverti-la bastante, já que, apesar de não ter comida, colocou a mão na água e ficou brincando.

Neste meio tempo, Xiao Ning apareceu acompanhado pelo 5º Ancião Qiao e a empregada Michi. O Grã-alquimista se aproximou da amiga sem muita pressa, aproveitando para dar uma olhada ao redor. E quando parou próximo a ela, falou:

― Pegou algum peixe?! ― comentou em um tom brincalhão, mas contido, exibindo apenas uma leve nota de alegria.

Ouvindo a voz familiar, Shui ergueu a cabeça e olhou para trás.

Ah, é você! Esses peixes são só para olhar, não para comer ― disse ela, se afastando da água e se colocando de pé. ― E o Xogum, achou o problema dele?

― Ainda é cedo para dizer qualquer coisa. ― Apesar de ter vindo como médico, seu tom era desmotivado e desinteressado. ― Você parece estar se divertindo. Já está toda suja ― apontou para a calça da garota, que se encontrava suja de terra e grama na altura do joelho. ― Gostou tanto assim deste lugar?

― Mas é claro que sim ― respondeu Shui, que se curvou e bateu a mão direita contra o joelho na tentativa de se limpar. Após as regras rígidas e desagradáveis de Michi, ela se sentiu um tanto desconfortável e achou que não conseguiria aproveitar a viagem. Mas depois de o próprio Xogum falar que aquelas normas eram “absurdas” e dizer para ela e Corina aproveitarem a estadia sem se importar, sentiu-se menos temerosa de fazer alguma coisa errada. ― A paisagem é linda e tem tanta pintura por todo o lugar. Você viu aquele guaxinim usando um chapéu de palha e segurando uma lanterna? É tão fofinho!

Notava-se por sua fala que ela estava bastante animada. Se antes experimentou de receio ao deixar seu império de origem e cruzar o oceano rumo a um lugar desconhecido, agora, a única coisa em seu coração era o fascínio e o divertimento.

― Sim. Eu vi. ― Por outro lado, diferente da Despertada de cabelo azul, Ning se mostrava apático, longe de sua personalidade extravagante de costume.

― O que foi? Aconteceu alguma coisa? ― perguntou Shui, que o conhecia bem o suficiente para notar certas mudanças em seu humor. ― Eu achei que a essa altura você estaria tentando entrar de fininho no dormitório feminino. Já tinha até preparado um discurso e uma bronca que nunca iria esquecer.

Hum... ― Ao ouvir o comentário, Xiao Ning apenas exibiu um sorriso discreto e emitiu um som gutural, sem muito ânimo. ― Não é nada demais ― acrescentou ele enquanto virava a cabeça e encarava a cidade ao longe. Naquele segundo, seu rosto assumiu um semblante reflexivo que trazia em sua essência certa amargura. ― É só que... eu já estive em muitos lugares como esse ― suspirou.

― Sério?! ― espantou-se Shui. ― Eu achava que você também nunca tinha deixado a Cidade da Fronteira do Caos. Quando foi que você viajou para esses lugares? Já esteve até no mar, não é?

― Bem ― Ning soltou outro suspiro, passou a mão sobre a cabeça, arrumando o cabelo bagunçado ―, isso foi em outra vida. ― Ao terminar de dizer isso, ele se virou e começou a se afastar.

― Aonde você vai? ― perguntou a jovem cultivadora, curiosa com a atitude peculiar do amigo.

O Grã-alquimista não parou para responder. E enquanto andava, falou em um tom determinado:

― Já passou da hora de me tornar um Despertado. Você também ainda não conseguiu se estabilizar depois de ter despertado um elemento, certo? Deveria se retirar e se concentrar nisso. O mesmo vale para você, Corina. ― A partir desse ponto, a voz de Ning se tornou grave e ele ordenou: ― Vocês duas, vão para o quarto e cultivem.

 


Nota do Autor!

Gente, sinto muito pelo sumiço esses dias. Tive muito trabalho nas últimas semanas.

Mas enfim, diante desse tempo cada vez mais curto, eu decidi fazer algumas mudanças em como escrevo a história. A partir de agora, farei capítulos mais longos, porém que trazem mais partes da histórias, dando uma dinâmina diferente, como foi no capítulo de hoje. Dessa forma, a história vai andar mais rápida.

Me falem aí se gostou desse formato ou se preferem como estava antes.



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